ESTADO DE SANTA CATARINA

SECRETARIA DE ESTADO DA FAZENDA

DIRETORIA DE ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA

GERÊNCIA DE TRIBUTAÇÃO

 

NOTA TÉCNICA N° 005/2012

 

TRATAMENTO TRIBUTÁRIO DO FORNECIMENTO DE ÁGUA ENCANADA

 

                       

1. Considerações iniciais:

                        Desde a promulgação da nova Constituição da República Federativa do Brasil em 1988, muitos Estados tem sustentado o entendimento de que incide o Imposto sobre Operações de Circulação de Mercadorias e sobre a Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS, sobre a distribuição de água encanada à população, sob o argumento de que a água captada de fontes e cursos d’água não é mais natural, mas o resultado de tratamento, inclusive com produtos químicos. Ou seja, a água fornecida à população seria uma mercadoria e, portanto, tributável pelo imposto estadual.

                        Nesse sentido, os Estados e o Distrito Federal celebraram, nos termos da Lei Complementar 24/1975, o Convênio ICMS 98/89, concedendo “isenção do ICMS em operações com água natural canalizada”. O mesmo convênio autoriza às unidades da Federação conceder remissão do “imposto devido” até a data da sua implementação.

                        Por sua vez, o Convênio ICMS 77/95 autoriza a revogação da isenção sobre a água canalizada, concedida com base no Convênio ICMS 98/89, ao mesmo tempo que autoriza a redução da base de cálculo, nas “operações internas com água natural canalizada”.

                        Esses convênios, tratando de benefícios fiscais, têm como pressuposto implícito a tributabilidade das operações com água encanada. À evidência, para que se possa instituir isenção do ICMS ou redução de sua base de cálculo, é condição necessária que seja tributada pelo referido imposto.

 

2. Competência tributária:

                        Consultando os Comentários ao Código Tributário Nacional, coordenado por Carlos Valder do Nascimento (Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 39), encontramos a seguinte definição: “Competência tributária é o poder atribuído pela Constituição Federal a determinado ente (sujeito de direito público), consistente em instituir e cobrar um tributo”.

                        Aprofundando o conceito, leciona Sacha Calmon Navarro Coelho (Curso de Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 71):

                        “... várias são as pessoas políticas exercentes do poder de tributar e, pois, titulares de competências impositivas: a União, os Estados-Membros, o Distrito Federal e os Municípios. Entre eles será repartido o poder de tributar. Todos recebem diretamente da Constituição, expressão da vontade geral, as suas respectivas parcelas de competência e, exercendo-as, obtêm as receitas necessárias à consecução dos fins institucionais em função dos quais existem (discriminação de rendas tributárias). O poder de tributar originariamente uno por vontade do povo (Estado Democrático de Direito) é dividido entre as pessoas políticas que formam a Federação”.

                        A questão da competência tributária assume importância para nós devido ao regime federativo adotado pelo Brasil. Com efeito, conforme Roque Antonio Carrazza (Curso de Direito Constitucional Tributário. 21ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 463), “a delimitação das competências da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal é reclamo impostergável dos princípios federativo e da autonomia municipal e distrital, que nosso ordenamento jurídico consagrou”.

                        Então, a competência tributária resume-se a uma “faculdade de editar leis que criem, in abstrato, tributos” (idem, p. 466). A ênfase colocada na criação in abstrato é porque a lei prevê abstratamente os elementos que compõe a imposição (fato gerador, sujeito passivo, base de cálculo e alíquota), dirigido a todos e relativo a situação hipotética. “Trata-se de uma  competência originária, que busca seu fundamento de validade na própria Constituição” (ibidem). O corolário da competência atribuída ao ente tributante é o exercício da competência, que consiste em “dar nascimento, no plano abstrato, a tributos” (idem p. 467).

                        Os tributos compreendem os impostos, as taxas e a contribuição de melhoria (CF, art. 145). As taxas e a contribuição de melhoria são de competência comum à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. Já os impostos são de competência privativa desta ou daquela pessoa jurídica de direito público interno.

                        A Constituição define as materialidades sobre as quais cada ente tributante é competente para instituir imposto. Assim, o art. 155, II, dispõe que compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir imposto sobre:

                        a) operações sobre circulação de mercadorias;

                        b) prestação de serviço de transporte interestadual e intermunicipal; e

                        c) prestação de serviço de comunicação.

                        Para sabermos se incide o ICMS sobre o fornecimento de água encanada à população, devemos determinar se água é mercadoria e se o seu fornecimento constitui operação de circulação de mercadorias. Isto por que, nas palavras de Marco Aurélio Greco (Planejamento Tributário. 2ª ed. São Paulo: Dialética, 2008, p. 150), “... ao atribuir competências, restringe-se o âmbito de atuação do titular do poder. Quando a CF delimita certa parcela da realidade para alguém tributar (a parcela pode ser jurídica ou de fato), isto quer dizer que o legislador só poderá tributar dentro dela (ou dentro daquela finalidade se a competência for assim qualificada)”.

 

3. O fato gerador do ICMS:

                        Nos limites da competência que lhe foi atribuída pela Constituição Federal, o art. 2°, I, da Lei 10.297, de 26 de dezembro de 1996, do Estado de Santa Catarina, dispõe que o ICMS tem como fato gerador as “operações relativas à circulação de mercadorias, inclusive o fornecimento de alimentação e bebidas em bares, restaurantes e estabelecimentos similares”.

                        Então, para incidir o ICMS, deve tratar-se primeiramente de mercadoria. Além disso, a operação deve ser relativa à circulação dessa mercadoria.

                        Como é de conhecimento trivial, entende-se por mercadoria o bem móvel adquirido para fins de revenda (ou produzido para venda). A finalidade (a intenção subjetiva) é elemento essencial para a caracterização de um bem como mercadoria. Assim, um mesmo bem pode ser mercadoria em uma determinada operação e não sê-lo em outra. Uma mercadoria, depois de passar do produtor para o(s) atacadista(s) e deste(s) para o(s) varejista(s), chega finalmente ás mãos do consumidor final que a adquire para seu uso próprio: nesse momento, o bem perde a condição de mercadoria. Podemos dizer que o destino de toda a mercadoria é deixar de o ser.

                        Por outro lado, operações relativas à circulação de mercadorias, segundo magistério de Hugo de Brito Machado (Aspectos Fundamentais do ICMS, São Paulo: Dialética, 1997, p. 25), “são quaisquer atos ou negócios, independentemente da natureza jurídica específica de cada um deles, que implicam na circulação de mercadorias, vale dizer, o impulso destas desde a produção até o consumo, dentro da atividade econômica, as leva da fonte produtora até o consumidor”. Esclarece ainda o mesmo autor:

                        “... um contrato de compra e venda, por si mesmo, não gera o dever de pagar ICMS. Não é fato gerador desse imposto, enquanto não implique circulação de mercadoria. Numa venda de mercadoria para entrega futura, por exemplo, não há fato gerador do imposto enquanto não ocorrer a entrega. Por isso mesmo, é importante o sentido da expressão operações relativas à circulação de mercadorias, que há de ser entendida em seu conjunto, e não o significado de cada uma das palavras que a compõe. O legislador constituinte preferiu, seguindo orientação da moderna doutrina do Direito Tributário, utilizar expressões desvinculadas de quaisquer negócios jurídicos. Referiu-se, assim, a um gênero de operações. Todos aqueles atos, contratos, negócios, que são usualmente praticados na atividade empresarial, com o fim de promover a circulação das mercadorias em geral, movimentando-as desde a fonte de produção até o consumo. E os considerou ligados a essa movimentação, não lhes atribuindo relevância, se considerados isoladamente. Por isto, um contrato de compra e venda de mercadorias, considerado isoladamente, como simples negócio jurídico, não gera o dever de pagar o ICMS, dever esse que surge, todavia, da circulação da mercadoria, como ato de execução daquele contrato”.

                        Sobre o tema, comenta Sacha Calmon Navarro Coelho (op. cit. p. 562):

                        “A palavra operação, utilizada no texto constitucional, garante assim que a circulação de mercadoria é adjetivação, conseqüência. Somente terá relevância jurídica aquela operação mercantil que acarrete a circulação da mercadoria como meio e forma de transferir-lhe a titularidade. Por isso, a ênfase constitucional na expressão operações de circulação de mercadorias. O imposto não incide sobre a mera saída ou circulação física que não configure real mudança de titularidade do domínio”.

                        Ao que arremata Roque Antonio Carrazza (ICMS, 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 40): “não é somente a compra e venda de mercadorias que abre espaço a este imposto, senão também a troca, a doação, a dação em pagamento etc. todas estas ‘operações’ propiciam a circulação jurídica de mercadorias e, em tese, são passíveis de tributação pelo ICMS”.

                        Essa doutrina encontrou eco no Poder Judiciário: de fato, decidiu a Segunda Turma do STF, no RE 93.523-1 AM (LEX 47: 119) que: “O simples deslocamento físico da mercadoria pelo seu proprietário, sem circulação econômica ou jurídica, não legitima a incidência do ICM”.

                        Mais recentemente a Primeira Seção do STJ, no julgamento do R. Esp. 1.125.133 (RDDT 182: 227) decidiu que: “A circulação de mercadorias versada no dispositivo constitucional refere-se à circulação jurídica, que pressupõe verdadeiro ato de mercancia, para ao qual concorrem a finalidade de obtenção de lucro e a transferência de titularidade”.

                        A transferência de titularidade, para Carrazza (op. cit. p. 56), no entanto, comporta uma exceção: “quando a mercadoria é transferida para estabelecimento do próprio remetente, mas situado no território de outra pessoa política (Estado ou Distrito Federal), nada impede, juridicamente, que a filial venha a ser considerada ‘estabelecimento autônomo’, para fins de tributação por via do ICMS. Assim é para que não se pejudique o Estado (ou o Distrito Federal) de onde sai a mercadoria”.

                        Fundamenta, o autor citado, esta exceção à regra – só ocorre operação de circulação de mercadoria com a mudança de titularidade da mercadoria – no princípio da Federação que impede que os Estados “se locupletem uns às custas dos outros”. A incidência do tributo, nessas operações, reveste-se da condição de “ficção jurídica”, para preservar o princípio federativo. Reconhece-se “a existência de operações tributáveis, celebradas entre estabelecimento da mesma empresa, nos casos de transferência de produtos da matriz para a filial, a fim de preservar as fontes de receitas tributárias e financeiras dos Estados” (ibidem).

 

4. O conceito de mercadoria:

                        Vimos que mercadoria é o bem móvel destinado à revenda (ou à mercancia). Nesse mesmo sentido, definiu Hely Lopes Meirelles (Imposto Devido por Serviço de Concretagem. Revista dos Tribunais. Ano 62, Julho/1973, vol. 453, pp. 45 a 52): “Mercadoria é toda coisa oferecida ao consumidor através da circulação econômica; enquanto a coisa não é posta em circulação econômica, não é mercadoria. O que caracteriza a mercadoria é a existência de um bem material posto em circulação econômica, para o consumo, mediante remuneração”.

                        O art. 110 do Código Tributário Nacional dispõe que “a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal [....] para definir ou limitar competências tributárias”. Assim, o constituinte repartiu a competência tributária entre os entes tributantes definindo as materialidades sobre as quais podem instituir impostos. Mas, o conteúdo dessas materialidades deve ser pesquisado no direito privado. A lei tributária não pode definir novos conteúdos. Nesse sentido se diz que o direito tributário é um direito de superposição, isso é “que pode captar conceitos e assimilar institutos, tais como lhe são fornecidos por outros setores do mundo jurídico” (Carrazza, op. cit. p. 42). No caso do ICMS, a Constituição deu competência aos Estados-membros para instituir imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias. O conceito de mercadoria deve ser pesquisado no direito comercial.

                        Dispõe o art 191 do Código Comercial que “é unicamente considerada mercantil a compra e venda de efeitos móveis ou semoventes, para os revender a grosso ou a retalho, na mesma espécie ou manufaturado”. Ou  seja, o contrato de compra e venda somente poderá ser considerada mercantil se tiver por objeto bem móvel e que o adquirente o adquira para revendê-lo. Com isso, temos uma definição legal do que se entende por mercadoria, conforme o direito vigente à época da promulgação da Constituição de 1988 e que foi por esta recepcionado.

                        Com efeito, leciona Aroldo Gomes de Mattos (ICMS: comentários á legislação nacional, São Paulo: Dialética, 2006, p. 22): “... eram, à época da CF/88, mercadorias para efeitos de incidência do imposto, conforme construção doutrinária do Direito Comercial, os bens móveis objeto da atividade empresarial. Melhor dizendo, os produzidos ou adquiridos habitualmente com a finalidade de revenda com lucro”.

                        Pondera Roque Antonio Carrazza que nada é mercadoria pela sua própria natureza, mas:

                        “Para que um bem móvel seja havido por mercadoria, é mister que ele tenha por finalidade a venda ou revenda. Em suma, a qualidade distintiva entre bem móvel (gênero) e mercadoria (espécie) é extrínseca, consubstanciando-se no propósito da destinação comercial” (ibidem).

 

4.1. Bem jurídico ou bem econômico?

                        Questão paralela é saber se o termo “bem”, utilizado na expressão “bem móvel adquirido para fins de revenda” deve ser tomado no sentido econômico ou jurídico.

                        Iniciemos por distinguir entre “bem” e “coisa”.  Conforme André Lalande (. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1993), coisa “exprime a idéia de uma realidade encarada no sentido estático, e como que separada ou separável, constituída por um sistema supostamente fixo de qualidades e de propriedades. A coisa opõe-se, então, ao fato ou ao fenômeno”. É o termo mais abrangente, expressando tudo que pode ser pensado. O bem, então, é uma categoria de coisa.

                        No que o “bem” se distingue das outra coisas?

                        Nicola Abbagnano (Dicionário de Filosofia. 2ª ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982) distingue dois sentidos fundamentais para o uso do termo. No que ele chama de teoria metafísica, bem “é a realidade e precisamente a realidade perfeita ou suprema e é desejado como tal”. No segundo sentido, que designa como teoria subjetivista, bem “é o que é desejado ou o que agrada, e é tal só nessa relação”.

                        O segundo sentido foi adotado pelas filosofias hedonistas (bem é o que proporciona prazer), inclusive o utilitarismo de Benjamim Bentham (bem é aquilo que satisfaz necessidades humanas: é util). Este último significado, por influência de Adam Smith, serviu de base para a construção do sentido econômico do termo. Com efeito, em economia, é considera-se bem: “Tudo o que tem utilidade, podendo satisfazer uma necessidade ou suprir uma carência. Os bens econômicos são aqueles relativamente escassos ou que demandam trabalho humano. Assim, o ar é um bem livre, mas o minério de ferro é um bem econômico” (Paulo Sandroni, Novíssimo Dicionário de Economia. São Paulo: Best Seller, 1999).

                        Aumentando ainda mais as incertezas, alguns juristas, sem dúvida influenciados pelo prestígio alcançado pela ciência econômica, tem adotado o sentido econômico do termo. É o que acontece com Silvio Rodrigues (Direito Civil. Vol. 1, 34ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 116):

                        “Como os interesses humanos são ilimitados e os bens econômicos, por definição, limitados, surge, naturalmente, entre os homens, um conflito de interesses quando disputam um bem. Esse conflito de interesses, se regulado pelo direito, dá lugar a uma relação jurídica”.

                        “[....] coisa é o gênero do qual bem é a espécie. A diferença específica está no fato de esta última incluir na sua compreensão a idéia de utilidade e raridade, ou seja, a de ter valor econômico”.

                        [....]

                        “Bens são coisas que, por serem úteis e raras, são suscetíveis de apropriação e contém valor econômico”.

                        “O Direito Civil só se interessa por coisas suscetíveis de apropriação e tem por um de seus fins disciplinar as relações entre os homens, concernindo tais bens econômicos”.

                        Esse posicionamento, no entanto, não é aceito por todos os juristas. Pelo contrário, a mais prestigiada doutrina nacional busca a construção de um sentido jurídico de bem. Nesse sentido, leciona um dos nossos mais eminentes civilistas, Clóvis Beviláqua (Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979, p. 269):

                        “Para o direito, bens são os valores materiais ou imateriais, que servem de objeto a uma relação jurídica. É um conceito mais amplo do que o de coisa. Esta, no dizer magistral de TEIXEIRA DE FREITAS, é ‘todo objeto material suscetível de medida de valor’. São os objetos corporais, segundo preceitua o Código Civil alemão, art. 90. Ao lado das coisas e dos bens econômicos, outros há de ordem moral, inapreciáveis como a vida, a liberdade, a honra, e os que constituem objetos dos direitos de família puros”.

                        Por sua vez, esclarece o prestigiado escólio de Pontes de Miranda (Tratado de Direito Privado. Tomo II, 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1974, p. 22-23):

                        “O conceito de ‘bem’, no Código Civil, arts. 43-49, 58-68 (cf. arts. 69 a 70), é aproximativamente o de objeto de direito, mais amplo, pois, que o de coisa. É ao conceito de bem, e não ao de coisa, que se prendem a distinção entre bens públicos e bens particulares, a distinção entre bens móveis e imóveis e, a despeito da expressão “coisas”, a distinção entre coisas singulares e coletivas (ou universais)”.

                        [....]

                        “Para o conceito de coisa, ou de bem, ou de objeto de direito é sem relevância o conceito de valor. O que não tem valor pode ser objeto de direito, inclusive de direito das coisas (coisa em sentido estrito). A tese de ser res nullius a coisa sem valor tem de ser energicamente repelida. Há propriedade de coisas sem valor e, até, de valor negativo, pelo custo de as guardar (e.g., coleção de jornais velhos; direito de autor de telas, músicas, ou livros que não mereceriam ser editados e, de certo, ninguém os adquiriria; cartas, cartões, papéis de embrulho já utilizados; créditos contra insolventes)”.

                        Em suma, com a devida vênia às doutas opiniões em contrário, o sentido jurídico de “bem” não se confunde, nem se reduz, ao sentido econômico. No sentido jurídico, entende-se por bem aquilo que é ou pode ser objeto de uma relação jurídica, independentemente de ser um “bem” no sentido econômico. O valor atribuído ao bem não é necessariamente econômico, mas trata-se antes de valor jurídico que não necessariamente pode ser aferido economicamente.

                        No caso da mercadoria, é um bem no sentido econômico porque vem satisfazer uma necessidade do consumidor (sem a qual não haveria o ciclo de comercialização); mas também é um bem no sentido jurídico, pois é objeto de relações jurídicas (contrato de compra e venda etc.). Para o direito tributário, entretanto, para analisar as relações tributárias decorrentes das operações de circulação de mercadorias, interessa o sentido jurídico de bem e não o sentido econômico.

 

5. Coisas fora do comércio:

                        O art. 69 do antigo Código Civil de 1916 dispunha que “são coisas fora do comércio as insuscetíveis de apropriação e as legalmente inalienáveis”. Considera-se como insuscetíveis de apropriação o ar, a água corrente, o mar etc.; são legalmente inalienáveis, as coisas destinadas ao uso comum do povo e as que pertencem ao Estado.

                        Do autorizado magistério de Pontes de Miranda (op. cit. p. 172), extraímos o seguinte trecho:  

                        “O direito romano deixou-nos o conceito de coisas extra commercium. Para ele, a classe era cheia pelas res communes omnium (o ar, a água corrente, o alto mar e as costas marinhas), as res divini juris e as res publicae, destinadas ao uso comum. [....] As coisas de uso comum do povo podem pertencer ao Estado (União, Estado-membro, Município), ou a particular, ou serem do povo mesmo. O art. 66, I, não apoia qualquer teoria a respeito de só pertencerem ao povo, ou ao Estado, ou de só serem res nullios: nele só se cogita do uso comum do povo, e não da titularidade do direito de propriedade”.

                        “Não se devem identificar res extra commercium e coisas não-suscetíveis de ser objeto de direito. Ser extra-comércio apenas significa não poder ser objeto de transmissão, salvo lei especial. Por outro lado, não se hão de identificar coisas comuns a todos (res communes omnium) e coisas sobre as quais nenhum direito pode haver: o que não pode haver, a respeito delas, é o direito privado. Não são bens de direito privado. Tal o ar, que enche o espaço sobre a terra e é inconfundível com esse espaço. O espaço é apropriável”.

                        Contudo, o novo Código Civil de 2002 não contém disposição semelhante à do art. 69 do Código de 1916. O novo Código, art. 100, apenas garante que “os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar”.

                        Poder-se-ia concluir que, a partir da Constituição de 1988 ou do novo Código Civil de 2002, a água encanada teria passado à condição de mercadoria e, portanto, sujeita à incidência do ICMS? Não, essa, como veremos, não é uma conclusão admissível, à luz do ordenamento jurídico brasileiro.

                        O art. 20, III, da Constituição Federal dispõe que “são bens da União os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais”. A seu turno, o art. 26, I, diz que “incluem-se entre os bens dos Estados as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes ou em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União”.

                        Embora o novo Código Civil não disponha sobre coisas fora do comércio, estão alcançadas pela inalienabilidade do art. 100, os bens expressamente referidos pela lei que passam a ser considerados como “de uso comum do povo”.

                        “Como o interesse público sobreleva o particular, o Poder Público, visando evitar a especulação, a escassez, a má distribuição de determinado produto necessário à população retira-o do campo da concorrência e o submete a um regime de monopólio. Assim, por exemplo, a eletricidade, o gás, o petróleo, a água etc. Nesses casos pode o Estado não explorar diretamente a coisa, mas por intermédio de concessionário” (Sílvio Rodrigues, op. cit. p. 150).

                        É o caso da água, definida como “bem de domínio público” pelo art. 1°, I, da Lei 9.433, de 8 de janeiro de 1997, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.

                        Conforme disposto no art. 5°, III, da mesma lei, são instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos, a outorga de direitos de uso de recursos hídricos, com os objetivos de assegurar o controle qualitativo e quantitativo dos usos da água e o efetivo exercício dos direitos de acesso à água (art. 11). A outorga, dispõe o art. 18, “não implica a alienação parcial das águas, que são inalienáveis, mas o simples direito de seu uso”.

                        Assim, por expressa disposição legal, a água é um bem inalienável, de uso comum do povo.

 

6. Natureza da água encanada fornecida à população:

                        O Supremo Tribunal Federal já havia firmado jurisprudência no sentido de que pela sua condição de res extra commercium, o fornecimento de água encanada em áreas urbanas é serviço público essencial, na conceituação da Lei 7.783, de 28 de junho de 1989, remunerada por meio de tarifa (STF, Segunda Turma, RE 77162 SP, DJ 9-8-77). Com efeito, o art. 10 do referido diploma legal dispõe que “são considerados serviços ou atividades essenciais, tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis”.

                        Nesse sentido, o Ministro José Delgado, do Superior Tribunal de Justiça, manifestou o seu entendimento pessoal, no julgamento do REsp 822.090 RS (DJ 22-5-2006), de que “a água é, na atualidade, um bem essencial à população, constituindo-se serviço público indispensável, subordinado ao princípio da continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível a sua interrupção”. No entanto, rendeu-se ao entendimento majoritário de que é possível interromper o fornecimento de água, por falta de pagamento, embora somente após aviso prévio. A posição predominante do tribunal fica muito clara no REsp 705.203 (DJ 7-11-2005) que distingue entre serviços públicos próprios, remunerados por taxa, e os serviços públicos impróprios, remunerados por tarifa. O serviço de fornecimento de água é considerado serviço público impróprio. A sua utilização é facultativa e está sujeita às disposições do Código de Defesa do Consumidor.

                        Em qualquer das hipóteses, resulta claro que o tribunal considera o fornecimento de água, prestação de serviço público concedido e não operação de circulação de mercadoria.

                        A água encanada não pode ser tida como mercadoria porque está entre os bens insuscetíveis de apropriação privada e, portanto, não pode ser objeto de mercancia. Leciona Roque A. Carrazza (op. cit., p. 130) que “a água em estado bruto não é uma mercadoria, porquanto não se destina ao comércio. É um bem que a todos pertence (bem público) e integra o patrimônio da nação”. Portanto, “… na medida em que as águas são incontendívelmente bens públicos, segue-se que não são mercadorias,não podendo, só por isso, ensejar tributação por meio de ICMS”.

                        Nessa senda, o Supremo Tribunal Federal, já firmou jurisprudência no sentido de “não ser a água canalizada mercadoria sujeita a tributação pelo ICMS, por tratar-se de serviço público”, como no caso do julgamento da ADI 2.224-5 (RDDT 95: 228).

                        A jurisprudência, no caso da tributação da água encanada, é abundante e bem sedimentada. Assim, o julgamento do AgRg no REsp 1.056.579 RJ, pela Segunda Turma do STJ (RDDT 172: 220, 2009):

                        “1. A água fornecida à população, após ser tratada pelas empresas concessionárias, permissionárias ou autorizadas, não caracteriza mercadoria, razão pela qual é insuscetível de cobrança de ICMS”.

                        “2. Inteligência do art. 46 do Código de Águas e do art. 18 da Lei que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, que determinam ser a concessão de serviço público de distribuição de água canalizada mera outorga que não implica alienação de águas, uma vez que se trata de bem de uso comum do povo inalienável”.

                        No mesmo sentido decidiu a Primeira Turma do mesmo Tribunal (REsp 794.984 RJ; RDDT 135: 130)

                        Tributário. Recurso Especial. ICMS. Fornecimento de Água Tratada por Concessionária de Serviço Público. Não-incidência. Ausência de Fato Gerador”:

                        “1. É intributável, por meio do ICMS, o fornecimento de água potável por empresas concessionárias desse serviço público.

                        “2. As águas em estado natural são bens públicos e só podem ser explorados por particulares, mediante concessão, permissão ou autorização”.

                        “3. A água, portanto, fornecida à população, após ser tratada pelas empresas concessionárias, permissionárias ou autorizadas, não caracteriza mercadoria”.

                        “4. Esse entendimento não se aplica à água mineral engarrafada e vendida por comerciantes. No caso, tributa-se a operação mercantil”.

                        “5. Na Adin n° 567, o tema foi analisado. O Min. Ilmar Galvão votou pela suspensão liminar de ICMS sobre o fornecimento de água no Estado de Minas Gerais, ‘por ter se pretendido modificar a  natureza jurídica do fornecimento de água potável, encanada, às populações urbanas, transformando-a de serviço público essencial em circulação de mercadoria’.

                        “6. Na Adin n° 2.224-5 DF, o Min. Néri da Silveira, no voto proferido, considerou relevante, para votar pela concessão da liminar, o mesmo fundamento invocado pelo Min. IlmarGalvão na Adin 567. A Adin não foi conhecida por problemas processuais. A tese de mérito, contudo, foi acenada para se reconhecer a não-tributação, pelo ICMS, da água fornecida como serviço público.”

                        No tocante à remuneração do serviço, decidiu a Primeira Turma do STJ (REsp. 655.130 RJ; RDDT 143: 223) que “não tem natureza jurídica tributária (taxa), mas constitui tarifa cujo valor deve guardar relação de proporcionalidade com o serviço efetivamente prestado, sob pena de enriquecimento sem causa”.

                        Enfim, “água não é mercadoria passível de circulação, como dito, sendo dever do Estado, até por questões de saúde pública, o seu fornecimento, e sendo esse fornecimento individualizado, logo, a caracterizar a incidência de um outro tributo, ou seja, a taxa, e considerando, também, que inexiste na lei do ICMS qualquer alusão à circulação de água canalizada como fato gerador, o que feriria o princípio da reserva” (STJ, Primeira Turma, AgRg no REsp 799.968 RJ; RDDT 147: 209).

 

7. Considerações finais:

                        A Constituição Federal delimitou a competência tributária dos Estados, descrevendo pormenorizadamente as materialidades sobre as quais poderiam instituir e cobrar impostos. Assim é que o art. 155, II, atribui aos Estados e ao Distrito Federal competência para instituir imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias.

                        Água encanada é mercadoria?

                        Fornecimento de água encanada é operação de circulação de mercadoria?

                        O art. 69 do Código Civil de 1916 dispunha expressamente sobre as “coisas for do comércio”, matéria sobre a qual o Código de 2002 é omisso.

                        Contudo, o art. 100 do novo Código Civil dispõe que são inalienáveis os bens expressamente referidos pela lei que passam a ser considerados como de “uso comum do povo”. Entre esses inclui-se a água, definida pelo art. 1°, I, da Lei 9.433, de 8 de janeiro de 1997, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.

                        Por outro lado, a Lei 7.783, de 28 de junho de 1989, considera o tratamento e abastecimento de água como serviço ou atividade essencial, remunerada por tarifa.

                        Por conseguinte, a água canalizada, mesmo tratada com uso de produtos químicos, não é considerada mercadoria pelo direito brasileiro, mas um bem essencial, de uso comum do povo, sendo proibida a sua alienação e, portanto, que seja comercializada.

                        A água canalizada não é vendida ao consumidor, mas distribuída para o consumo. Então, o objeto do negócio jurídico presente nessa atividade tem natureza de prestação de serviço público, o qual é exercido mediante concessão do Poder Público e remunerado por tarifa. Assim, o negócio não tem por objeto a obrigação “de dar” água (mercadoria), mas “de fazer” (distribuição de água) e, por conseguinte, não está abrangido na competência tributária prevista no art. 155, II, da Constituição da República.

                        Diverso é o caso da água mineral, explorada mediante permissão de lavra e submetida ao envasamento em garrafas e bambonas, para ser comercializada por unidade. Nesse caso, trata-se efetivamente de mercadoria e sua comercialização encontra-se abrangida no campo de incidência do ICMS.

 

Getri, em Florianópolis, 9 de março de 2012.

 

 

           Velocino Pacheco Filho                                     Lintney Nazareno da Veiga

               AFRE – mat. 184244-7                                                        Gerente de Tributação