ANEXO ÚNICO (ATO DIAT Nº 017/2022)

PeSEF de 18.05.22

NOTA TÉCNICA N° 001/2022

Repetição do indébito: inteligência do art. 166 do CTN

1. Considerações iniciais

                   O art. 166 do CTN tem causado certa perplexidade entre os aplicadores do direito, ao condicionar a restituição de tributos “que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro” (i) à prova de ter assumido referido encargo ou (ii) no caso de tê-lo transferido a terceiro, “estar por este expressamente autorizado a recebê-la”.

                   Exploraremos a seguir os diversos aspectos da questão, no contexto do procedimento de restituição do indébito tributário, seguido da abordagem do caso específico da restituição de impostos indiretos.

2. Norma de incidência tributária

                   A incidência do tributo resulta da sua previsão pela norma jurídica, contida no texto do direito positivo, e da ocorrência concreta do fato previsto no antecedente da norma como fato gerador do tributo.

                   A norma jurídica, identificada originalmente em sua estrutura formal por Hans Kelsen, encontrou entre nós sua formulação mais completa e acabada em Paulo de Barros Carvalho (Direito tributário, linguagem e método. 2ª ed. São Paulo: Noeses, 2008, p. 131):

                   “A derradeira síntese das articulações que se processam entre as duas peças daqueles juízos, postulando uma mensagem deôntica portadora de sentido completo, pressupõe, desse modo, uma proposição-antecedente, descritiva de possível evento do mundo social, na condição de suposto normativo, implicando uma proposição-tese, de caráter relacional, no tópico do consequente. A regra assume, portanto, uma feição dual, estando as proposições implicante e implicada unidas por um ato de vontade da autoridade que legisla. E esse ato de vontade, de quem detém o poder jurídico de criar normas, expressa-se por um dever-ser neutro, no sentido de que não aparece modalizado nas formas ‘proibido’, ‘permitido’ e ‘obrigatório’. “Se o antecedente, então deve-ser o consequente”. Assim, diz toda e qualquer norma jurídico positiva”.

                   Assim, A norma de imposição tributária tem a estrutura de uma proposição hipotética (proposição composta, compreendendo a proposição-antecedente e a proposição-tese, unidas por um functor implicacional deôntico) do tipo “se A então (deve-ser) B”. Se este primeiro functor (interproposicional) é neutro, o mesmo não acontece com o functor intraproposicional (relação tributária) que está afetado pelos modais deônticos: proibido, permitido ou obrigatório.

                   No caso da norma de imposição tributária, a proposição-antecedente descreve hipoteticamente o fato cuja ocorrência acarretaria o surgimento da relação jurídico tributária entre o Estado e o contribuinte referida na proposição tese: se ocorrer tal fato, então o contribuinte estará obrigado a recolher aos cofres públicos determinada soma em dinheiro a título de tributo. Contudo, o efeito previsto no consequente da norma (obrigação tributária) somente será desencadeado com o reconhecimento em linguagem competente da ocorrência concreta de fato correspondente ao fato descrito no antecedente da norma, o que ocorre, segundo sistemática adotada pelo CTN, mediante o lançamento tributário correspondente.

                   “A relação jurídica se instaura por virtude de um enunciado fático, posto pelo consequente de norma individual e concreta, uma vez que, na regra geral e abstrata, aquilo que encontramos são classes de predicados que um acontecimento deve reunir para tornar-se fato concreto, na plenitude de sua determinação empírica. Enquanto na norma geral e abstrata o enunciado referencial se arma para o futuro, se programa para a frente, a norma individual e concreta vai fazer irromper um liame jurídico específico, mediante enunciado de índole relacional, perfeitamente individualizado quanto aos termos, sujeitos (ativo e passivo) e quanto à conduta-prestação, que é seu objeto. Subordinado o ato ou negócio jurídico a evento futuro e incerto, seus efeitos normais ficarão inibidos e somente por ocasião do acontecimento previsto como condição suspensiva, vertida em linguagem, é que nascerá, com todo o vigor característico, o vínculo obrigacional tributário (Barros Carvalho, id. p. 831)”.

3. Indébito tributário e crédito do contribuinte

                   Quando dizemos que o tributo é obrigação ex lege, queremos dizer que o tributo não decorre de contrato ou de delito, mas que a sua exigência pelo Estado está baseada exclusivamente na lei. A Constituição Federal proíbe expressamente à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios “exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça” (art. 150, I). Por conseguinte, tudo o que for recolhido ao exigido além do que a lei tributária permite, é indevido e deve ser restituído.

                   Nesse sentido, dispõe o art. 165 do Código Tributário Nacional (CTN) que “o sujeito passivo tem direito, independentemente de prévio protesto, à restituição total ou parcial de tributo, seja qual for a modalidade de seu pagamento”, nos seguintes casos:

                   1. cobrança ou pagamento espontâneo de tributo indevido ou maior que o devido em face da legislação tributária aplicável, ou da natureza ou das circunstâncias materiais do fato gerador efetivamente ocorrido;

                   2. erro na identificação do sujeito passivo, na determinação da alíquota aplicável, no cálculo do montante do débito ou na elaboração ou conferência de qualquer documento relativo ao pagamento;

                   3. reforma, anulação, revogação ou rescisão de decisão condenatória.

                   O reconhecimento de que o pagamento do tributo foi indevido (ou maior que o devido) faz surgir, para o contribuinte, o direito contra a Fazenda Pública de reaver o que foi pago e para a Fazenda a obrigação de restituir o tributo pago indevidamente. Surge, assim, uma outra relação jurídica em que o sujeito passivo é o Estado e o sujeito ativo, titular do direito de exigir o cumprimento da prestação, é o contribuinte que recolheu numerário ao Estado, a título de tributo, que não era devido como tal.

                   Do texto de direito positivo podemos construir a seguinte norma: “se houver recolhimento indevido de tributo, então a Fazenda Pública deverá devolver o indébito”. Considerando do ponto de vista do direito subjetivo do contribuinte, a norma pode ser enunciada: “se houver recolhimento indevido de tributo, então o contribuinte tem o direito de exigir da Fazenda Pública a sua restituição”.

                   Eurico Marcos Diniz de Santi  propõe a expressão “débito do Fisco”, para se referir à “restituição do indébito”, argumentando que se o pagamento não era devido não revestia a condição de tributo. No tocante ao surgimento do dever da Fazenda de restituir o indébito e do direito do contribuinte de exigi-lo, leciona esse autor (Decadência e Prescrição no Direito Tributário. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 96):

                   “O crédito tributário é a relação jurídica que decorre mediatamente do fato jurídico tributário e, imediatamente, de ato formalizador de ato da autoridade ou ato do particular. O débito do Fisco é a relação jurídica que decorre mediatamente do fato do pagamento indevido e, imediatamente, de ulterior ato de aplicação que reconheça esse fato”.

                   “É o processo de positivação do direito: o evento jurídico (o evento jurídico tributário, no caso do crédito, e o pagamento indevido, no caso do débito) engendrando uma relação jurídica efectual (a obrigação tributária, no caso do crédito, e a obrigação do Fisco, no caso do débito) que, mediante ato de aplicação do direito produz relação jurídica com revestimento jurídico (crédito tributário e débito do Fisco)”.

                   O autor citado distingue três atos de aplicação habilitados “a constituir o débito do Fisco, de acordo com os Arts. 165, III e 167, II do CTN: (i) os atos administrativos de reforma, anulação ou revogação, (ii) a decisão administrativa e (iii) a decisão judicial. A edição de qualquer dessas normas individuais e concretas consubstancia o fato jurídico que coloca o Fisco como sujeito passivo de um dever jurídico de conteúdo patrimonial, fundando-se no evento do pagamento indevido” (id. p. 97). A decisão administrativa referida em (ii) é precisamente a decisão que deferir o pedido de restituição do indébito tributário.

4. Restituição de tributos

4.1. O pedido de restituição

                   Cabe ao contribuinte pleitear administrativamente ou judicialmente (ação de repetição do indébito) a restituição do tributo recolhido indevidamente. A pretensão do contribuinte deve estar instruída com os elementos probatórios necessários à formação da convicção.

                   Administrativamente, dispõe o art. 78 da Lei 3.938, de 26 de dezembro de 1966, que o “pedido de restituição será formulado em requerimento que contenha todas as informações necessárias à identificação da pessoa do interessado, domicílio fiscal e ramo de negócio ou atividade e em que se prove”:

                   1. a tempestividade do pedido;

                   2. a ocorrência do pagamento indevido; e

                   3. se for o caso, a satisfação de uma das condições previstas no art. 74 (assunção do ônus tributário ou estar autorizado a pedir restituição por quem o suportou).

                   Com efeito, leciona José Mörschbächer (Repetição do indébito tributário indireto, 3ª ed. São Paulo: Dialética, 1998, p. 59):

                   “A restituição de qualquer imposto, seja indireto, seja direto, repousa cumulativamente em três pressupostos, quais sejam: a) que se trata de pagamento indevido; b) que não esteja decaído o direito de pleitear a restituição; c) que o peticionário tenha legítimo interesse econômico para pleitear restituição”.

                   Esses pressupostos podem ser provados por qualquer dos meios previstos nos arts. 332 a 443 do Código de Processo Civil (Lei 5.869/1073). O art. 332 dispõe que “todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos em que se funda a ação ou a defesa”.

4.2. Decadência e prescrição

                   O “direito de pleitear restituição”, dispõe o art. 168 do CTN, “extingue-se com o decurso do prazo de 5 (cinco) anos, contados”:

                   (i) da “data da extinção do crédito tributário”, ou seja, da data do pagamento indevido;

                   (ii) da data em que se tornar definitiva a decisão administrativa ou passar em julgado a decisão judicial que tenha reformado, anulado, revogado ou rescindido a decisão condenatória.

                   O art. 169, por sua vez, dispõe que “prescreve em 2 (dois) anos a ação anulatória da decisão administrativa que denegar a restituição”.

                   Vale, contudo, observar que as expressões “decadência” e “prescrição” não têm, no direito tributário, o mesmo sentido que no direito civil. Ou seja, não guardam relação com os “direitos potestativos” (decadência) ou com a exercício de uma “pretensão” (prescrição). O sentido aqui é muito mais singelo como leciona Eurico Marcos Diniz de Santi (op. cit. p. 100):

                   “A decadência do direito do contribuinte corresponde à perda do direito de o contribuinte pleitear administrativamente o débito do Fisco e a prescrição do direito do contribuinte deflui de um desdobramento da interpretação do Art. 168 do CTN e, ainda, da hipótese da ação anulatória da decisão administrativa que denegar a restituição, aludida no Art. 169 do CTN”.

                   O prazo previsto no art. 168, “para pleitear restituição”, será de decadência, se intentado na via administrativa, e de prescrição, se na via judicial. Já o prazo do art. 169 será sempre de prescrição.

                   Eurico de Santi (id. p. 253) esclarece ainda o seguinte:

                   “Utilizaremos a expressão decadência do direito do contribuinte para a extinção do direito de pleitear o débito do Fisco pela via administrativa, e prescrição do direito do contribuinte, para a extinção do direito de cobrar o débito do Fisco pela via judicial. As normas gerais e abstratas que regem a decadência e a prescrição do direito do contribuinte produzem regras individuais e concretas que veiculam, em seu antecedente, o fato concreto do decurso do tempo qualificado pela omissão do contribuinte e, em seu conseqüente, a extinção, respectivamente, do direito de pleitear administrativamente o débito e do direito à ação judicial de cobrança do débito do Fisco”.

                   Já o prazo previsto no art. 169 é seguramente de prescrição: “Prescreve em 2 (dois) anos a ação anulatória da decisão administrativa que denegar a restituição”.

4.2.1. Contagem do prazo de decadência no caso do tributo se tornar indevido por causa de declaração de inconstitucionalidade:

                   O prazo do art. 168 tem dois marcos iniciais de contagem: no caso do tributo ser indevido no momento do pagamento, o prazo será contado do pagamento. Porém se o tributo era devido no momento do pagamento, tornando-se indevido em razão de decisão judicial, o prazo deverá ser contado do momento em que a decisão se tornar definitiva (pedido administrativo) ou do trânsito em julgado da decisão judicial.

                   Eduardo Bottallo (Repetição do Indébito Tributário e o art. 166 do Código Tributário Nacional. RDT no 75: 219-225) comenta a esse propósito que “quando o caso é de tributo que foi exigido com base em lei depois declarada inconstitucional já não cabe o pleito administrativo, uma vez que antes da declaração judicial de inconstitucionalidade o tributo era devido (presunção de constitucionalidade das leis!) e o lançamento o corporificou integralmente”.

                   A seu turno, leciona Gabriel Lacerda Troianelli (A ADI n° 15 e a Reabertura de Prazos para Repetição de Indébito. RDDT 152: 81): “Admitido que a abertura de prazo para repetir tributo declarado inconstitucional tem por fundamento material a segurança jurídica do contribuinte, o prazo em questão deve ter por termo inicial o momento em que restar definitivamente não só a insegurança quanto à legitimidade do tributo como também a incerteza quanto ao fato de ter seu pedido de restituição aceito”.

                   No caso de declaração de inconstitucionalidade, devemos considerar se a inconstitucionalidade foi declarada no controle difuso ou no concentrado. Se a inconstitucionalidade for declarada no controle concentrado, a regra aplica-se sem maiores problemas. A partir do trânsito em julgado, passa a correr o prazo. Contudo, no caso do controle difuso, a decisão somente se aplica à parte. Para que a declaração de inconstitucionalidade tenha efeitos erga omnes é necessária a edição de Resolução pelo Senado da República, nos termos do inciso X do art. 52 da Constituição Federal. Conforme Marco Aurélio Greco e Helenilson Cunha Pontes (Inconstitucionalidade da lei tributária, repetição do indébito, São Paulo: Dialética, 2002, p. 39):

                   “Porém, no exame incidenter tantum, a ação tem outro pedido (p. ex. repetição de valor pago) cujo fundamento jurídico é a inconstitucionalidade da lei. Assim, a nosso ver, é uma imprecisão afirmar que o contribuinte pede a declaração de inconstitucionalidade. A rigor, ele pede a restituição de um valor pago, mas o faz “porque” a norma em que a exigência se apoiou não tinha fundamento de validade. Portanto, nesta hipótese, a inconstitucionalidade situa-se no fundamento jurídico do pedido. Por esta razão, a questão constitucional, no âmbito do processo nos Tribunais, é tratada como incidente a ser resolvido antes do julgamento do mérito do caso”.

                   Segundo esses autores (id. p. 48) “... antes da pronúncia (ou da extensão) da inconstitucionalidade da lei tributária, o contribuinte não possui efetivamente um “direito a uma prestação”, apto a gerar contra si um prazo prescricional que o fulmine pela sua inércia. Não pode haver inércia a ser fulminada pela prescrição se não há direito exercitável, isto é, se não há “actio nata”.

                   O fundamento da prescrição é a inércia do titular de uma pretensão que possa ser exercida. Nisso consiste o princípio da actio nata. Por conseguinte, a contagem do prazo respectivo somente pode se iniciar quando o titular do direito toma conhecimento do fato e da extensão de suas conseqüências. Assim, pelo princípio da actio nata, o prazo de prescrição ou de decadência para pedir repetição do indébito deve contar-se da declaração de inconstitucionalidade da lei tributária (STF, RE 136.883 RJ e RE 141.331-0 RJ).

                   Com efeito, a declaração de inconstitucionalidade “altera a qualificação jurídica do pagamento feito, pois retira um de seus fundamentos de validade”, a legalidade da exigência do tributo. “Neste momento, ele torna-se indevido, não porque assim sempre tenha sido, mas porque passou a receber esta nova qualificação em decorrência da decisão judicial” (id. p. 52).

                   Mas, enquanto o efeito erga omnes “constitui uma decorrência inelutável do controle concentrado de constitucionalidade” que retira a “norma impugnada do conjunto de normas válidas que compõe o ordenamento jurídico (id. p. 57), a declaração de inconstitucionalidade advinda de “julgamento incidentur tantum proferido em processo de outro contribuinte” somente produzirá efeitos sobre a situação jurídica dos demais contribuintes “se vier a ser editado um dentre outros dois tipos de atos jurídicos que apresentam eficácia geral e, portanto, atinjam todos os contribuintes, mesmo os que não participaram do processo específico” (id. p. 71).

                   Conforme já decidiram os ministros da egrégia Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (Recurso Especial 446.764 RS):

                   “1. O sistema de controle de constitucionalidade das leis adotado no Brasil implica assentar que apenas as decisões proferidas pelo STF no controle concentrado tem efeitos erga omnes. Consectariamente, a declaração de inconstitucionalidade no controle difuso tem eficácia inter partes. Forçoso, assim, concluir que o reconhecimento da inconstitucionalidade da lei instituidora do tributo pelo STF só pode ser como termo inicial para a prescrição da ação de repetição do indébito quando efetuado no controle concentrado de constitucionalidade, ou, tratando-se de controle difuso, somente na hipótese de edição de resolução do Senado Federal, conferindo efeitos erga omnes àquela declaração (CF, art. 52, X)”.

4.3. A quem cabe o ônus da prova

                   O ônus da prova cabe a quem alega. O art. 333 da Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (CPC), dispõe que “o ônus da prova incumbe ao autor quanto a fato constitutivo do seu direito e ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor” que é disposição que é formulada por Fabiana Del Padre Tomé (A prova no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2008, p. 233) nos termos seguintes: “... a prova dos fatos constitutivos cabe a quem pretenda o nascimento da relação jurídica, e a dos extintivos, impeditivos ou modificativos, a quem os alegue, independentemente de ser autor ou réu”.

                   Assim, o contribuinte que alega ter pago tributo indevido e que pretende a restituição dos valores recolhidos está obrigado à produzir as provas relativas à sua pretensão. Conforme decisão da Primeira Seção do STJ, que reúne as câmaras de direito tributário, no julgamento dos Embargos de Declaração no Recurso Especial 953.369 PR (RDDT 154: 185), “em repetição do indébito é imprescindível que o autor faça prova do pagamento indevido”. No mesmo sentido, decidiu a Primeira Turma (Recurso Especial  967.157 PR; DJU 1, de 22.10.2007, p. 225; RDDT 148: 187) que “o juízo de procedência supõe a comprovação, pelo autor (CPC, art. 333, I), do fato constitutivo do direito, qual seja, o do recolhimento dos valores indevidos a serem restituídos”.

                   A aplicação da norma ao caso concreto, pois, depende fundamentalmente do material probatório trazido à colação. Conforme Paulo Celso Bergstron Bonilha (Da prova no processo administrativo tributário. São Paulo: LTR, 1992, p. 85): “Fazer justiça, em princípio, é aplicar a lei ao fato. Indispensáveis, portanto, à administração da justiça o conhecimento da lei e da verdade do fato. A descoberta desta verdade como elemento essencial ao julgamento, impõe a exigência da prova”.

                   No mesmo sentido, comenta Fabiana Del Padre Tomé (op. cit. p. 230): “Como discurso dialógico, a comunicação jurídica materializada nos autos processuais exige que todos os fatos alegados sejam fundamentados, com vistas a possibilitar a solução do dubium conflitivo”. No tocante aos meios de prova, diz a mesma autora (id. p. 84) que:

                   “Integram o conceito de demonstração quaisquer recursos capazes de atestar a veracidade de um fato. Engloba desde as demonstrações lógico-matemáticas em processo inferenciais até as hipóteses de argumento retoricamente produzido, de modo que toda análise e alegação, quando voltadas ao convencimento do destinatário acerca da certificação de um fato, são qualificáveis como prova”.

                   A prova, portanto, não só tem a virtude de dar conhecimento do fato ocorrido que, desse modo, é introduzido no direito, mas também visa o convencimento da autoridade administrativa ou judicial perante a qual pretende ver reconhecido o seu direito. O fato (acontecimento, evento, fato-no-mundo), por mais evidente que possa parecer, deve ser reconhecido e introduzido no direito, mediante uso da linguagem apropriada, para que possa produzir efeitos jurídicos. A produção dessa prova, no caso da repetição do indébito constitui ônus do contribuinte que alega ter recolhido tributo indevido e que pretende ver reconhecido o seu direito à devolução das quantias recolhidas ao Erário.

4.4. Restituição como edição de norma individual e concreta

                   Extraímos, então, do texto de direito positivo, a norma geral e abstrata, segundo a qual o pagamento de tributo indevido (antecedente) faz surgir uma relação jurídica entre a Fazenda Pública e o contribuinte (conseqüente) que obriga o primeiro a restituir o que foi pago indevidamente e reconhece ao segundo o direito de exigir a restituição. Na lição de Barros Carvalho (op. cit. p. 133):

                   “Se a proposição hipótese é descritora de fato de possível ocorrência no contexto social, a proposição-tese funciona como prescritora de condutas intersubjetivas. A conseqüência normativa apresenta-se, invariavelmente, como uma proposição relacional, enlaçando dois ou mais sujeitos de direito em torno de uma conduta regulada como proibida, permitida ou obrigatória”.

                   Em resposta ao pleito do contribuinte, acompanhado das provas pertinentes, a autoridade administrativa ou judiciária, uma vez firmado o seu convencimento, ordena a restituição. O despacho que reconhece o pagamento indevido e ordena a restituição, por sua vez, tem a estrutura de uma norma individual (voltada para o requerente) e concreta (relativa ao fato demonstrado pelas provas colacionadas pelo requerente).

                   “Assim, o fato do pagamento indevido é o antecedente dessa norma individual e concreta de repetição do indébito, que tem por conseqüente a relação jurídica do débito do Fisco. Sem tal norma, não há débito do Fisco nem fato jurídico do pagamento indevido, como realidades pertinentes ao direito. Sem tal revestimento jurídico, subjazem apenas, e ainda fora do direito, como entidades do mundo subjetivo que aguardam a necessária intersubjetivação, mas que, sem a qual, esmaecem no fluxo temporal da consciência coletiva, que ainda não é direito” (Eurico de Santi, op. cit. p. 138).

4.5. Restituição como procedimento subsuntivo

                   Vimos que a norma jurídica tem a estrutura de uma proposição hipotética deôntica, do tipo: “se A, então deve-ser B”. Cabem as seguintes observações:

                   1. a proposição hipotética é uma proposição composta em que suas partes são unidas pelo functor interproposicional “se ... então”; e

                   2. a proposição é dita deôntica por duas razões: (i) o functor interproposicional tem caráter deôntico (não é descritivo de uma realidade, mas estabelece um dever-ser) não modalizado: “se A, então deve-ser B”, sem atribuir um modal (obrigatório, permitido, proibido); e (ii) enquanto a proposição A é descritiva de determinada situação (e.g. o recolhimento foi indevido), a proposição B contém um dever-ser modalizado (e.g. o Estado deve restituir ao contribuinte o imposto indevidamente recolhido).

                   A decisão administrativa ou judicial que ordenar a restituição, por sua vez, é uma norma individual e concreta: “porque A, então deve-ser B” ou “porque o tributo recolhido era indevido, então deve ser restituído”.

                   A subsunção do fato à norma consiste na montagem de um silogismo, onde:

                   1. a premissa maior é a norma jurídica geral e abstrata (se A, então deve-ser B);

                   2. a premissa menor é uma proposição categórica que afirma a prótase da norma geral e abstrata (as provas trazidas à colação demonstram que efetivamente ocorreu A); e

                   3. a conclusão é a apódose da norma individual e concreta (como efetivamente ocorreu A, então deve-ser B).

4.6. Restituição como ato administrativo

                   A decisão administrativa que ordenar a restituição, sem prejuízo de constituir-se em norma individual e concreta, é também um ato administrativo. Eurico Marcos Diniz de Santi (op. cit. p. 104) observa que a expressão “ato administrativo” designa tanto o ato da autoridade como o seu resultado que é a edição da norma individual e concreta.

                   “Ora, se de um lado essa dualidade é aceita na linguagem técnica do direito, de outro, no plano científico, que prima pela univocidade de seus termos, deve ser esclarecida de antemão. Assim, convencionaremos chamar ato-fato administrativo, ao ato da autoridade administrativa que configura o fato do exercício da competência administrativa, e ato-norma administrativo, à norma individual e concreta produzida por esse ato-fato, deixando a expressão ato administrativo para designar o gênero que envolve essas duas espécies”.

                   Como ato administrativo, deve observar os requisitos de validade dos atos administrativos, quais sejam: (i) autoridade competente (entendida a competência como a atribuição que lhe foi cometida por lei para a prática do ato); (ii) objeto ou o efeito jurídico visado pelo ato; (iii) forma que é a prescrita em lei (forma escrita); (iv) finalidade ou resultado específico que deve ser produzido pelo ato; e (v) motivo, consistindo nos pressupostos de fato (conjunto de circunstâncias que leva à prática do ato) e de direito (dispositivo legal que dá sustentação ao ato) que servem de fundamento do ato.

                   O motivo não se confunde com a motivação que consiste na demonstração (por escrito) de que os pressupostos de fato realmente estão presentes.

                   Nesse sentido, dispõe o art. 42, I, da Lei Complementar estadual 313, de 22 de dezembro de 2005 (Código de Direitos e Deveres do Contribuinte) que “os atos administrativos, sob pena de nulidade, serão motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses”. O dispositivo enfatiza a necessidade de motivar as decisões administrativas, sob pena de nulidade. O § 1° do mesmo artigo determina que “a motivação há de ser explícita, clara e congruente, podendo consistir em declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou propostas que, neste caso, serão parte integrante do ato”.

                   Então, a decisão da administração deferindo ou indeferindo o pedido de restituição de tributos, como ato administrativo que é, deverá atender a todos os requisitos de validade aqui nitidamente demonstrados, principalmente o objeto e a motivação, pois,  é do objeto que nascerá formalmente a relação jurídica de  débito do fisco – deferimento, ou a negativa unilateral de não reconhecimento dessa relação – indeferimento; ressaltando-se que ambas  deverão estar estribada em motivos legalmente previsto por tratar-se de ato administrativo vinculado.

                   Já o art. 41 do mesmo pergaminho dispõe sobre a razoável duração do processo, princípio acrescido pela Emenda Constitucional 45/2004 aos direitos e garantias fundamentais, previstos no art. 5°, LXXVIII: “é obrigatória a emissão de decisão fundamentada, pela Administração Tributária, nos processos, solicitações ou reclamações em matéria de sua competência, no prazo máximo de 90 (noventa) dias, prorrogável, justificadamente, uma única vez e por igual período”.

                   O art. 5° da Constituição da República, por outro lado, determina ao processo administrativo a observância do devido processo legal (inciso LIV) e do contraditório e da ampla defesa (inciso LV).

                   Por sua vez, o art. 37, “caput”, da Carta trata dos princípios informadores do direito administrativo, que devem ser escrupulosamente observados pelos servidores públicos, inclusive na prática dos atos de sua competência. São eles:   

                   1. Legalidade: esse princípio está ligado ao próprio conceito de Estado de Direito; a Administração Pública, ao contrário das pessoas privadas, somente pode fazer o que a lei lhe permite; já foi dito que “administrar é aplicar a lei de ofício”; a Administração não tem vontade própria, ou seja: a vontade da Administração é a lei;

                   2. Publicidade: também conhecido como “transparência”, está associada à própria idéia de democracia; se a fonte do poder é o povo, deve ser-lhe assegurado o direito ao conhecimento dos atos da Administração; o sigilo, em um Estado Democrático de Direito, deve ser exceção e restrito a determinadas matérias, expressamente previstas, como no caso do inciso LX do art. 5° da Constituição (defesa da intimidade ou do interesse social); já o inciso XXXIII assegura a todos o direito à informação de interesse coletivo ou geral;

                   3. Impessoalidade: este princípio preside a relação da Administração com os administrados que deve ser impessoal, sem preferência por estes ou aqueles (“todos são iguais perante a Administração); por outro lado, considera-se que os atos administrativos não são praticados pelo servidor (mero instrumento de que se vale a Administração), mas pela própria Administração enquanto entidade;

                   4. Moralidade: por este princípio, não basta que os atos da Administração (ou de seus servidores) sejam legais, eles devem ser também morais; com efeito, o inciso LXXIII do art. 5° da CF prevê hipótese de ação popular que vise anular ato lesivo à moralidade administrativa;

                   5. Eficiência: introduzido pela EC 19/1998, impõe o dever da boa administração; consiste em obter os melhores resultados possíveis, com os recursos disponíveis, para a consecução do bem comum.

4.7. Recurso e pedido de reconsideração

                   Do despacho que indeferir o pedido do contribuinte, cabe (i) pedido de reconsideração à mesma autoridade ou (ii) recurso à autoridade hierarquicamente superior.

                   Em sede de direito tributário, é limitada a utilização do pedido de reconsideração, tendo em vista que se trata de atividade administrativa vinculada – conforme art. 3° do CTN, o tributo é cobrado “mediante atividade administrativa plenamente vinculada”.

                   São vinculados os atos praticados pela Administração sem margem alguma de liberdade para decidir, pois a lei previamente tipificou o único comportamento possível diante da hipótese prevista em lei. Os atos discricionários, pelo contrário, são praticados pela Administração que dispõe de certa margem de liberdade para decidir sobre a conveniência e oportunidade de praticar o ato.

                   Como a atividade administrativa é vinculada e a Administração Tributária não dispõe de margem de liberdade, a aceitação do pedido de reconsideração deve trazer algum fato novo ou circunstância que não foi apreciada no despacho reconsiderando. Não sendo o caso, o pedido de reconsideração deve ser recebido, em homenagem ao princípio da economia processual, como recurso e encaminhado à apreciação do superior hierárquico, fazendo-se constar essa circunstância no encaminhamento.

4.8. Restituição e compensação

                   A compensação é forma de extinção das obrigações, prevista no art. 368 e seguintes do Código Civil (Lei 10.406/2002), quando duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, “as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem”. O art. 369 acrescenta que as dívidas devem ser líquidas, vencidas e de coisas fungíveis.

                   No direito tributário, a compensação é modalidade de extinção do crédito tributário, prevista no art. 156, II, do CTN. Dispõe o art. 170 do mesmo pergaminho que “a lei pode, nas condições e sob as garantias que estipular, ou cuja estipulação em cada caso atribuir à autoridade administrativa, autorizar a compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda Pública”. Ou seja, diversamente da lei civil, a compensação, no direito tributário, depende de expressa autorização de lei.

                   Corroborando esse entendimento, a Egrégia Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do AgRg no R. Esp. 965.419 RS (DJ de 5-3-08; RDDT 152: 225), decidiu que: “III – O art. 170 do Código Tributário Nacional, ao tratar do instituto da compensação tributária, impõe o entendimento de que somente a lei pode atribuir à autoridade administrativa o poder de deferir ou não a referida compensação entre créditos líquidos e certos com débitos vencidos ou vincendos”.

                   Não discrepa a Segunda Turma do mesmo sodalício que no julgamento do REsp 1.010.166 SC (RDDT 174: 185) decidiu:

                   “1. O art. 170 do CTN dispõe que somente a lei pode autorizar a compensação de créditos tributários, nas condições e sob as garantias que estipular”.

                   “2. A compensação tributária depende de regras próprias e específicas, não sendo possível aplicar subsidiariamente as regras gerais do Código Civil”.

                   “3. Sendo assim, não se pode aplicar por analogia o art. 354 do CC/2002 (art. 993 do CC/1916), porquanto o legislador não quis aplicar à compensação de tributos indevidamente pagos as regras do Direito Privado. E a prova da assertiva é que o art. 374 do CC/202, que determinava que a compensação das dívidas fiscais e parafiscais seria regida pelo disposto no Capítulo VII daquele diploma legal foi revogado pela Lei 10.677/2003, logo após a entrada em vigor do CC/2002”.

                   O despacho da autoridade administrativa, reconhecendo que houve pagamento indevido de tributo, constitui um crédito líquido e certo do contribuinte contra a Fazenda Pública. “O pagamento pressupõe relação jurídica de crédito tributário e o ato de pagar do contribuinte, enquanto a restituição pressupõe relação jurídica de débito do Fisco e ato de pagar do Fisco. A compensação pressupõe relação jurídica de crédito tributário e de débito do Fisco, e ato do contribuinte ou do Fisco que realize essa operação, além de depender de lei que expressamente autorize esse ato” (Eurico Marcos Diniz de Santi op. cit. p. 98).

                   A restituição nessa hipótese especifica está autorizada pela Lei Complementar estadual 313, de 22 de dezembro de 2005 (Código de Direitos e Deveres do Contribuinte do Estado de Santa Catarina) que em seu art. 26 dispõe: “O crédito referente a imposto do contribuinte, decorrente de relação tributária, assim reconhecido em decisão administrativa definitiva ou sentença judicial transitada em julgado, poderá, por opção sua, ser compensado com débitos relativos à Fazenda Pública”. O parágrafo único do mesmo artigo acrescenta: “Ao crédito tributário do contribuinte, objeto da compensação a que se refere o caput deste artigo, aplicam-se os mesmos índices de correção monetária incidentes sobre os débitos fiscais, contados desde o pagamento indevido, bem como juros contados da decisão definitiva que o reconheceu”.

                   A restituição do indébito, diretamente em numerário ou na modalidade de compensação com crédito tributário, nos termos do art. 26 da LC 313/2005, é uma faculdade do contribuinte, não podendo ser substituída por decisão unilateral da Fazenda.

                   A egrégia Segunda Turma do STJ, no julgamento do REsp 624.321 PR (RDDT 139: 239), decidiu: “Ocorrido o trânsito em julgado da decisão que determinou a repetição do indébito, é facultado ao contribuinte manifestar a opção de receber o respectivo crédito por meio de precatório regular ou mediante compensação, uma vez que ambas as modalidades são formas de execução do julgado colocado à disposição da parte quando procedente a ação.”

4.9. Restituição e incidência de juros e correção monetária

                   A restituição de tributos, seja qual for a modalidade, pagamento ou compensação, deve ser acrescida de juros e correção monetária. A fluência de juros está prevista no próprio Código Tributário Nacional, art. 167, parágrafo único: “A restituição vence juros não capitalizáveis, a partir do trânsito em julgado da decisão definitiva que a determinar”. A disposição é corroborada pela Súmula 188 do STJ: “Os juros moratórios do indébito tributário são devidos a partir do trânsito em julgado da sentença”.

                   A legislação tributária catarinense, por sua vez, prevê a fluência de juros no parágrafo único do art. 75 da Lei 3.938/1966 e de correção monetária no art. 77 da Lei 5.983/1981: “Na restituição de quaisquer créditos tributários pagos indevidamente, bem como na devolução de depósito administrativo ou judicial decorrente de Notificação Fiscal, os valores serão atualizados monetariamente”.

                   A previsão de juros e correção monetária na repetição do indébito, além de expressamente previstas no parágrafo único do art. 26 da LC 313/2005, o art. 16, XIV, da mesma Lei Complementar assegura o direito do contribuinte de receber da Administração Tributária “o mesmo tratamento que esta dispensa ao contribuinte em idênticas situações”.

                   A dificuldade que precisa ser enfrentada é que Santa Catarina adotou a Selic para atualização de seus créditos tributários (art. 69 da Lei 5.983/1981, na redação dada pelo art. 102 da Lei 10.297/1996). A taxa Selic, criada em 1979, define-se como a taxa de juros média que incide sobre operações overnight, lastreados por títulos de dívida pública, registrados no Sistema Especial de Liquidação e de Custódia. Contudo, a Selic inclui uma parcela de correção monetária. “A Taxa Selic compreende juros de mora e correção monetária, sendo vedada sua utilização cumulativa com qualquer outro índice de juros ou correção” (STJ, Segunda Turma, AgRg no REsp 976127 / SP, DJe 07/10/2008).

                   Ora, na repetição do indébito, os juros moratórios e a correção monetária contam a partir de marcos temporais diferentes: a correção monetária é contada a partir do pagamento indevido e os juros moratórios, a partir da decisão administrativa que reconhecer que houve pagamento indevido. Como não podemos desmembrar a Selic em seus componentes, identificando o que corresponde a juros e o que corresponde a correção monetária, o problema reclama solução que, necessariamente, deverá ser de lege ferenda.

5. Restituição de impostos indiretos

5.1. Caracterização de imposto indireto

                   A classificação de um imposto como indireto está relacionada ao fenômeno econômico da repercussão, ou seja, do repasse do imposto, via preço, ao adquirente. Contudo, a repercussão em si não se presta como critério para classificar o imposto como indireto. À evidência, qualquer tributo cobrado de uma empresa vem a constituir componente dos custos e será financiado pela receita de venda de bens ou serviços, ou seja, será arcado, em última análise, pelos seus clientes.

                   A mera repercussão econômica do imposto sobre o adquirente da mercadoria não é critério suficiente para classificar um tributo como indireto.

                   Tentando outra abordagem, podemos dizer que a riqueza das pessoas pode ser atingida pelo Fisco de várias maneiras: é o caso, por exemplo, da riqueza consumida que é atingida indiretamente pela tributação. Nesse sentido, José Mörschbächer (op. cit. p. 39) define imposto indireto como “aquele no qual a norma jurídica de tributação vincula ao Estado, como sujeito passivo da relação de imposto, não a pessoa cuja renda a hipótese de incidência seja fato-signo presuntivo, mas aquela ou aquelas antepostas a ela dentro do relacionamento econômico, objeto de imposição”. Ou seja, “o que faz determinado imposto ser indireto é o fato de o mesmo utilizar, exclusiva ou preponderantemente, a forma de tributação indireta da renda do setor privado da economia” (id. p. 41).

                   Perquirindo a notável obra de Aliomar Baleeiro – Direito Tributário Brasileiro, brilhantemente atualizada por Misabel Abreu Machado Derzi (11ª ed Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 370), encontramos o seguinte escólio:

                   “.. a Constituição brasileira assegura, como de resto o fazem os países europeus e latino-americanos, que o contribuinte, nas operações de venda que promova, transfira ao adquirente o ônus do imposto que adiantará ao Estado e, ao mesmo tempo, possa ele creditar-se do imposto que suportou em suas aquisições (embora na posição de adquirente apenas tenha sofrido a transferência e nada tenha pessoalmente recolhido aos cofres públicos). Tal tributo não onera, assim, a força econômica do empresário que compra e vende ou industrializa, porém a força econômica do consumidor, segundo ensina Herting. A rigor, quer do ponto de vista jurídico – pois há expressa licença constitucional para isso – quer do ponto de vista econômico, o imposto foi modelado para ser suportado pelo consumidor, jamais pelo contribuinte-comerciante”.

                   Ressalta do texto a lição de que impostos como ICMS, IPI, ISS etc., ao tributar a produção, a circulação de bens e serviços visa, na verdade, a riqueza do consumidor destes bens e serviços e não onerar a cadeia de produção e comercialização. Que esse foi o pensamento do legislador, pode ser constatado pela adoção do sistema de seletividade das alíquotas. Com efeito, o art. 155, § 2°, III, da Constituição Federal, dispõe que o imposto “poderá ser seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços”. Mercadorias e serviços essenciais para quem? Ora, para o consumidor, naturalmente. O critério de graduação do ICMS, escolhido pelo constituinte, é a essencialidade das mercadorias e serviços para o consumidor cuja riqueza está sendo visada pela tributação. Nesse sentido é o magistério de Roque Antonio Carrazza (ICMS. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 363):

                   “Evidentemente, o princípio da seletividade tem por escopo favorecer os consumidores finais, que, no final das contas, são os que suportam a carga econômica do ICMS. Não é por outra razão que quem, adquirindo bem ou serviço luxuoso, revela possuir grande capacidade econômica deve ser proporcionalmente mais tributado por meio deste imposto do que quem compra um bem imprescindível à sua vida ou frui de um serviço essencial. É que, neste último caso, não há, em rigor, liberdade de consumo, mas, apenas necessidade, já que ninguém pode prescindir de pão, de transporte coletivo, de energia elétrica (apenas para citarmos alguns exemplos). Daí ser imperioso que sobre estes bens e serviços se faça sentir um tratamento fiscal mais brando”.

                   O imposto é dito indireto quando atinge indiretamente a riqueza do cidadão, indiretamente mediante a tributação do seu consumo de bens e serviços.

5.2. Contribuinte de fato e contribuinte de direito

                   A conseqüência mais marcante da tributação indireta é o fenômeno econômico da repercussão do tributo sobre o consumidor, via preços. A repercussão faz surgir as figuras do contribuinte de direito (de jure) e do contribuinte de fato (de facto). Apenas o primeiro tem “relação pessoal e direta com a situação que constitui o respectivo fato gerador” do tributo (CTN, art. 121, parágrafo único, I). O segundo, por sua vez, é quem suporta o ônus financeiro do tributo.

                   Conforme José Mörschbächer (op. cit. p. 45), “sendo o contribuinte legal a pessoa que sofre a incidência jurídica do imposto, o contribuinte de fato, em oposição, é a que, por se situar em geral na etapa final da circulação econômica dos bens, serviços ou utilidades tributadas, sofre a incidência econômica do imposto, isto é, os efeitos ou reflexos financeiros da incidência jurídica, mediante inclusão ostensiva ou oculta do respectivo gravame no preço de aquisição, sem condições de repassá-lo adiante”.

                   Em princípio, somente teria relevância para o direito tributário o contribuinte de direito que efetivamente ocupa o pólo passivo da relação jurídica tributária que se instaura com a ocorrência do fato gerador. O contribuinte de fato e a própria noção de repercussão são conceitos econômicos que somente produzem efeitos jurídicos quando reconhecidos pelo direito. A matéria é disciplinada pelo art. 166 do CTN que dispõe: “A restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro somente será feita a quem prove haver assumido referido encargo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la”. Esse dispositivo foi reproduzido, na legislação catarinense, pelo art. 74 da Lei 3.938, de 26 de dezembro de 1966.

                   Então o dispositivo aplica-se apenas aos tributos “que comportem por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro”. Por “transferência do respectivo encargo financeiro”, à evidência, entende-se a repercussão do tributo. Os tributos que “por sua natureza” comportem essa transferência (então não é qualquer tributo) devem ser os tributos indiretos. Com efeito, segundo a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (REsp 902.327 PR; RDDT 142: 154), “4. .... o art. 166 do CTN só tem aplicação aos tributos indiretos, isto é, que se incorporam explicitamente aos preços, como é o caso do ICMS, do IPI, etc. .........”.

                   Nesse caso, a restituição (de tributo indireto), nos termos do art. 166, está condicionada a que o requerente faça prova de que assumiu o ônus tributário, podendo ser suprida por autorização de quem a suportou (contribuinte de fato). A segunda condição constitui medida de proteção ao contribuinte de fato, para evitar que o  contribuinte de direito se locuplete às suas custas. Com efeito, se o contribuinte de direito já recuperou o imposto pago, mediante transferência do ônus tributário ao adquirente (contribuinte de fato), a restituição do imposto representaria locupletamento ilícito do contribuinte de direito sobre o contribuinte de fato. Sobre esse ponto, lapidar é o magistério de Alfredo Augusto Becker (Teoria Geral do Direito Tributário. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1972, p. 75):

                   “Contribuinte: no plano jurídico, é exclusivamente a pessoa (o sujeito passivo) situada no pólo negativo da relação jurídica tributária, em cujo polo positivo o Estado assumiu a posição do sujeito ativo; as posteriores relações jurídicas (ou apenas econômicas) entre o “contribuinte” e outra pessoa, não são relações jurídicas de natureza tributária (e se apenas econômicas, evidentemente nem são jurídicas) e esta outra pessoa não é “contribuinte” (sujeito passivo na relação jurídica tributária), embora seja ela que, afinal, venha a suportar o ônus econômico do tributo”.

5.3. Legitimidade ad causan para pedir restituição

                   Quem pode pleitear a restituição do indébito? O contribuinte de direito (que prove haver assumido o ônus ou esteja autorizado a pedir restituição)? O contribuinte de fato (também condicionado à prova de haver assumido o ônus tributário)? Ambos?

                   Ora, apenas o contribuinte de direito está obrigado ao recolhimento do tributo ao Erário (somente ele figura no pólo passivo da relação jurídica tributária). Por isso, apenas o contribuinte de direito tem legitimidade para pedir a restituição do tributo indevido. Nesse sentido, decidiu o STJ, no julgamento do AgRg no REsp 1090782 / RJ (Ministro Luiz Fux; Primeira Turma; DJe 04/11/2010):

                        "...o art. 166, do CTN, embora contido no corpo de um típico veículo introdutório de norma tributária, veicula, nesta parte, norma específica de direito privado, que atribui ao terceiro o direito de retomar do contribuinte tributário, apenas nas hipóteses em que a transferência for autorizada normativamente, as parcelas correspondentes ao tributo indevidamente recolhido: Trata-se de norma privada autônoma, que não se confunde com a norma construída da interpretação literal do art. 166, do CTN. É desnecessária qualquer autorização do contribuinte de fato ao de direito, ou deste àquele. Por sua própria conta, poderá o contribuinte de fato postular o indébito, desde que já recuperado pelo contribuinte de direito junto ao Fisco. No entanto, note-se que o contribuinte de fato não poderá acionar diretamente o Estado, por não ter com este nenhuma relação jurídica. Em suma: o direito subjetivo à repetição do indébito pertence exclusivamente ao denominado contribuinte de direito. Porém, uma vez recuperado o indébito por este junto ao Fisco, pode o contribuinte de fato, com base em norma de direito privado, pleitear junto ao contribuinte tributário a restituição daqueles valores”.

                        “8. É que, na hipótese em que a repercussão econômica decorre da natureza da exação, ‘o terceiro que suporta com o ônus econômico do tributo não participa da relação jurídica tributária, razão suficiente para que se verifique a impossibilidade desse terceiro ir a integrar a relação consubstanciada na prerrogativa da repetição do indébito, não tendo, portanto, legitimidade processual’ (Paulo de Barros Carvalho, in "Direito Tributário - Linguagem e Método", 2ª ed., São Paulo, 2008, Ed. Noeses, pág. 583)”.

                   Trata-se de matéria sumulada pelo Supremo Tribunal Federal (Súmula STF 546): “Cabe restituição do tributo pago indevidamente, quando reconhecido por decisão, que o contribuinte de jure não recuperou do contribuinte de facto o quantum respectivo”.

                   No mesmo sentido decidiu a Segunda Turma do STJ, no REsp 1.192.992 RS (RDDT 185: 207):

                   “1. A partir do julgamento do REsp 903.394 AL, realizado sob o rito do art. 543-C do Código de Processo Civil (recurso repetitivo), ficou decidido que apenas o contribuinte de direito tem legitimidade ativa ad causam para demandar judicialmente a restituição de indébito referente a tributos indiretos”.

                   “3. Nas operações internas com  energia elétrica, o contribuinte é aquele que a fornece ou promove a sua circulação (definição disposta no art. 4º, caput, da Lei Complementar 87/1996). Assim, ainda que se discuta a condição da concessionária, é certo não ser possível enquadrar o consumidor final na descrição legal de contribuinte de direito”.

                   Também, a mesma Turma, no R Esp. 949.665 PR; DJU 21-2-08; RDDT 152: 239): “Em sede de repetição de indébito, os documentos indispensáveis à propositura da ação são aqueles hábeis a comprovar a realização do pagamento indevido e a legitimidade ad causam do contribuinte que arcou com o referido recolhimento”.

                   Não discrepa desse entendimento a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (AgRg no REsp 809.034 SP; RDDT 130: 219):

                   “I – A jurisprudência desta Corte pacificou entendimento no sentido de que, na restituição do ICMS em razão do recolhimento indevido, não há como fugir da regra prevista no art. 166 do CTN, que exige peremptoriamente a comprovação de que o contribuinte de direito (comerciante) não repassou ao contribuinte de fato (consumidor) o encargo financeiro do tributo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, de que está por este autorizado a pleitear a repetição do indébito”.

                   Por fim, decidiu a Primeira Seção do STJ (AgRg na Petição nº 3.064 SP; RDDT 118: 221):

                   “2. O creditamento objetivado, em verdade, nada mais é do que a compensação, na escrita fiscal, do que foi pago indevidamente com débitos tributários de ICMS. Não há, pois, como escapar a espécie dos autos da regra prevista no art. 166 do CTN, que exige a comprovação de que o contribuinte de direito (comerciante) não repassou ao contribuinte de fato (consumidor) o encargo financeiro do tributo, ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, de que está por este autorizado a pleitear a repetição do indébito.”

5.4. Repercussão econômica do tributo

                   Devemos ter em mente que a repercussão econômica do tributo é um fenômeno descrito pela ciência econômica, na linguagem própria desse ramo do conhecimento. Para ser considerada pelo direito deve ser vertida na linguagem do direito, conforme suas próprias categorias.

                   Assim, para a compreensão do disposto no art. 166 do CTN, parece-me útil captar inicialmente a repercussão como fenômeno econômico, para, em seguida, como e em que termos foi introduzido no mundo jurídico pelo referido dispositivo legal.

                   Rubens Gomes de Sousa, bem conhecido tributarista, soube apreender de modo notável o sentido da repercussão tributária, do ponto de vista da economia (A Tributação das Vendas: sua natureza, desenvolvimento e tendências modernas. In: O Imposto sobre Vendas e Consignações no Sistema Tributário Brasileiro. Série Prática Fiscal nº 1, Rio de Janeiro: Edições Financeiras, 1956, p. 10):

                   “Com efeito, a repercussão do imposto cobrado sobre uma transação depende essencialmente da rigidez ou elasticidade da procura da utilidade transacionada. A transferência do ônus fiscal fazendo-se necessariamente por um acréscimo no preço dos bens ou serviços, o imposto somente repercutirá integralmente se as condições do mercado permitirem que o acréscimo de preço seja igual ao montante do tributo. Fora dessa hipótese, ocorrerá a ‘repercussão inversa’ e o tributo será parcial ou totalmente absorvido pelo ‘contribuinte legal’”.

                   “Nem mesmo uma disposição legal que vise tornar a repercussão juridicamente obrigatória pode ter a virtude de alterar a lei da oferta e da procura em contrário à conclusão que acaba de ser exposta. De fato, uma disposição desse tipo apenas dá origem, juridicamente, a uma relação de direito privado entre o “contribuinte legal” e o “contribuinte de fato”, mas nem sequer afeta a relação de direito público entre o “contribuinte legal” e o poder tributante. E muito menos afeta o aspecto econômico do problema, que continua regido pela elasticidade da procura”.

                   “Confrontando com uma disposição dessa ordem, o “contribuinte legal”, na impossibilidade de majorar o preço de venda em importância igual ao imposto, terá de reajustá-lo de modo a cumprir formalmente a lei e ao mesmo tempo continuar a vender o produto ou o serviço. Esse reajustamento terá forçosamente de fazer-se à custa dos dois elementos de que se compõe o preço, isto é o valor de custo e o lucro. Esgotada a capacidade de compressão do primeiro, o reajustamento se refletirá sobre o segundo, com a conseqüência, já referida, da absorção do imposto pelo “contribuinte legal” até o limite da redução da margem de lucro”.

                   Em outros termos, a repercussão, enquanto fenômeno econômico, pode ou não ocorrer ou ainda ocorrer em parte. Não é algo que dependa da vontade dos agentes econômicos, mas das características do mercado. Em uma primeira abordagem, podemos dizer que quanto maior o poder monopolista do vendedor, maior o seu poder de influenciar preços e, portanto, de repassar o ônus tributário para o adquirente. De modo inverso, quanto maior o poder monopsonista do comprador, maior o seu poder de influenciar preços e, portanto, de resistir à transferência do ônus tributário (como esclarecimento: monopsônio é o conceito especular do monopólio: um comprador e muitos vendedores).

                   Mesmo em um mercado de concorrência pura – não vamos falar em concorrência perfeita que é uma situação ideal –, a repercussão econômica do imposto depende da elasticidade-preço da demanda (como observou com propriedade Rubens Gomes de Sousa): quanto mais elástica for a demanda, menor a possibilidade de fazer repercutir o ônus do tributo sobre o adquirente. A necessidade de reduzir o preço para conseguir vender o produto, faz com que o tributo seja absorvido por outros componentes do preço, como a margem de lucro, por exemplo. Pelo contrário, quanto mais inelástica for a demanda, maior a possibilidade de fazer o adquirente arcar com o ônus do tributo.

                   Lembremos que a Constituição privilegiou o mercado de concorrência, ao eleger a livre concorrência entre os princípios da ordem econômica (art. 170, IV). Além disso, a atividade econômica do Estado ficou reduzida ao mínimo (art. 173), sendo permitida apenas “quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo”. A exploração da atividade econômica ficou assim reservada ao setor privado; a exploração direta pelo Estado passou a ser a exceção. Ao Estado fica reservado o papel de “agente normativo e regulador da atividade econômica” (art. 174), exercendo as funções de fiscalização, incentivo e planejamento. A preferência manifestada pelo constituinte pela economia de mercado, fica patente, na seara tributária, com a introdução do art. 146-A pela EC 42/2003 que permite o estabelecimento de “critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência”.

                   A empresa em um mercado de concorrência é basicamente         uma “tomadora” de preços. Ela não pode se afastar muito do “preço de mercado” (equilíbrio entre oferta e procura) sob pena de não conseguir comercializar suas mercadorias. Daí ser limitado o seu poder de fazer repercutir sobre os compradores o ônus do tributo. Em muitos casos, o tributo é absorvido reduzindo a margem de lucro.

5.5. Repercussão jurídica do tributo

                   O direito não desconhece o fenômeno econômico da repercussão, mas o recebe em seus próprios termos. A repercussão econômica do tributo, enquanto mero fato-no-mundo não produz efeitos jurídicos. É preciso que se torne fato-jurídico, mediante sua enunciação na linguagem apropriada, para que produza efeitos jurídicos. A esse propósito leciona Alfredo augusto Becker (op. cit. p. 534) que:

                   “.... o legislador, ao criar a incidência jurídica do tributo, simultaneamente, cria regra jurídica que outorga ao contribuinte de jure o direito de repercutir o ônus econômico do tributo sobre outra determinada pessoa. Desde logo, cumpre advertir que essa repercussão jurídica do tributo, de modo algum, significa a realização da repercussão econômica do mesmo. Esta repercussão econômica pode ocorrer apenas parcialmente ou até não se realizar, embora no plano jurídico tenha se efetivado”.

                   Isto por que, leciona o mestre gaúcho, “... os fatores decisivos da repercussão econômica do tributo são estranhos à natureza do tributo e determinados pela conjuntura econômico-social” (id. p. 541).

                   A matéria foi disciplinada pelo direito tributário, no art.166 do CTN, da seguinte forma:

                   (i) tratando-se de imposto indireto, presume-se que o imposto repercuta sobre o adquirente que suporta então o ônus da incidência tributária;

                   (ii) a presunção é relativa (juris tantum), podendo ser elidida pelo contribuinte de jure, cabendo-lhe o ônus da prova;

                   (iii) no caso do imposto ter efetivamente repercutido, a restituição do tributo fica condicionada a autorização do contribuinte de fato.

                   Então, do ponto de vista da ciência econômica, o tributo pode ou não repercutir, transferindo-se o ônus tributário ao contribuinte de fato. Mas do ponto de vista do direito tributário, a repercussão é uma presunção legal, cabendo ao contribuinte de jure provar a não repercussão. Paulo de Barros Carvalho (op. cit. p. 837) analisa a dinâmica das presunções:

                   Na presunção legal encontramos, de um lado, o fato presuntivo e, de outro, o fato presumido. Considera-se provado o fato legalmente presumido. E o que justifica essa previsão legal? Por que o fato presumido adquire, de pronto, status de fato provado? Tal se justifica pelo vínculo de associação prescrito pela lei. Desse modo, fala-se em presunção relativa, que admite prova em contrário; mas, não havendo prova em contrário, a associação se mantém; dado o fato presuntivo, deve ser o fato presumido, porque não houve prova em sentido oposto”.

                   O fato presuntivo, no caso, é o tributo ser indireto, comportando, “por sua própria natureza”, a transferência do respectivo encargo financeiro. O fato presumido é a própria repercussão do tributo. Caso o contribuinte de juris não lograr provar que assumiu o encargo do tributo (não o transferiu ao contribuinte de fato), prevalece a presunção.

                   A seu turno, Florence Haret (Teoria e prática das presunções no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2010, p. 317) comenta de modo quase acaciano:

                   “Tomemos a indagação inicialmente formulada: o que se pretende presumir? O que é presumido na presunção? A resposta é uma só e de uma simplicidade cristalina: o fato presumido. Este, em outros termos, é aquilo que se entende como fato jurídico em sentido amplo. Logo, o raciocínio presuntivo se dirige a constituir o fato jurídico em sentido amplo para, em seguida, estabelecer associação entre este e o enunciado factual da norma prescritiva, imputando àquele os efeitos jurídicos deste”.

                   Pode-se responder que o que se pretende presumir é que o tributo repercutiu sobre o contribuinte de fato, atingindo efetivamente a sua riqueza pessoal.

                   “Dessa forma, para ser aplicável a conditio indebiti necessário se faz a presença, na relação processual, além do enriquecido ou favorecido com o indébito tributário, do empobrecido ou prejudicado. Este, o empobrecido ou prejudicado, será sempre o solvens (contribuinte legal) quando o indébito tributário houver decorrido de imposição, ou suposta imposição, direta. Diversamente, se a imposição, ou suposta imposição, houver ocorrido indiretamente sobre a pessoa que seria a visada pela norma jurídica, o empobrecido ou prejudicado com o pagamento indevido será sempre o contribuinte de fato, que poderá ou não corresponder à pessoa que seria o contribuinte de direito, ao solvens. A restituição haverá de ser feita a quem – pronome indefinido – comprove haver assumido o correspondente encargo financeiro, ou seja, ao efetivamente empobrecido ou prejudicado com o pagamento indevido”.

                   “Em conclusão, o imposto comporta a transferência do respectivo encargo financeiro somente naquelas hipóteses em que a correspondente regra jurídica de tributação estiver dirigida indiretamente sobre a pessoa cuja renda se pretenda atingir através do imposto, ou seja, somente nas hipóteses em que efetivamente se puder falar em imposição indireta da renda da comunidade (José Mörschbächer, op. cit. p. 42)”.

5.6. A prova da não repercussão do tributo

                   Cabe ao contribuinte de jure a prova de que o tributo não repercutiu. Podem ser utilizados todos os meios de prova admitidos em direito, embora prevaleça a prova documental.

5.7. A autorização do contribuinte de fato como condição para a restituição do tributo:

                   O tributo recolhido indevidamente foi levado ao Erário pelo contribuinte de jure que é obrigado ao recolhimento, pois somente ele está no pólo passivo da relação jurídico tributária. Somente o contribuinte de jure é parte legítima para pleitear a repetição do indébito tributário.

                   Entretanto, o legislador, presumindo ter havido transferência do respectivo ônus do tributo, exige que o contribuinte de jure prove não ter transferido o ônus ao contribuinte de fato. Se o ônus financeiro do imposto não foi transferido ao adquirente, o contribuinte de jure poderá se habilitar a receber a restituição do imposto.

                   Mas, se não for provada a assunção, prevalece a presunção de que o tributo repercutiu sobre o contribuinte de fato, que suportou, portanto, o ônus tributário. Nesse caso, o contribuinte de jure somente poderá pleitear a restituição se for autorizado pelo contribuinte de fato que, desse modo terá um instrumento para recuperar do contribuinte de jure o imposto recolhido indevidamente por ele suportado. Nesse sentido, a decisão da Egrégia Primeira Turma do STJ no AgRg no REsp 1090782 / RJ, Relator Ministro Luiz Fux (DJe 04/11/2010):

                   “Por sua própria conta, poderá o contribuinte de fato postular o indébito, desde que já recuperado pelo contribuinte de direito junto ao Fisco. No entanto, note-se que o contribuinte de fato não poderá acionar diretamente o Estado, por não ter com este nenhuma relação jurídica. Em suma: o direito subjetivo à repetição do indébito pertence exclusivamente ao denominado contribuinte de direito. Porém, uma vez recuperado o indébito por este junto ao Fisco, pode o contribuinte de fato, com base em norma de direito privado, pleitear junto ao contribuinte tributário a restituição daqueles valores”.

5.8. Restituição sob a forma de crédito em conta gráfica:

                   A restituição do indébito comporta duas modalidades: ou é restituído em numerário ou sob a forma de compensação com créditos tributários do contribuinte para com o Estado, na forma do art. 26 da LC 313/2005.

                   Mas, tratando-se de impostos não-cumulativos, como é o caso do ICMS, o art. 80 da Lei 3.938, de 26 de dezembro de 1966, dispõe: “Sempre que for possível a reutilização do tributo, a restituição poderá ser efetuada sob a forma de crédito, conforme dispuser o Regulamento de cada tributo”. Nesse caso, a restituição assume a forma de autorização para que o contribuinte registre como crédito, para abater do imposto devido, na apuração do imposto a recolher no respectivo período, o valor do imposto restituído.

                   A restituição sob a forma de autorização de crédito é uma faculdade que o legislador pôs à disposição da autoridade fazendária. Poderá deixar de fazê-lo e ordenar a restituição em dinheiro se o contribuinte apresentar justificativa plausível. Pode ainda acontecer que o contribuinte prefira utilizar o ICMS restituído para compensar débito de outros impostos, na forma do art. 26 da LC 313/2005.

                   Um segundo mecanismo está previsto na legislação do ICMS – RICMS-SC (Decreto 2.870/01), art. 33:

                   “Art. 33. O contribuinte, independentemente de prévia autorização do fisco, poderá creditar-se do imposto indevidamente pago, em virtude de erro de fato, ocorrido na escrituração dos livros fiscais ou no preenchimento de documento de arrecadação”.

                   “Parágrafo único. O crédito será escriturado no livro Registro de Apuração do ICMS, consignando-se, no campo destinado a observações, a natureza do erro cometido e o período de apuração a que se refere”.

                   Nesse caso, o crédito ocorre por iniciativa do contribuinte, sem o exame da matéria pela autoridade fazendária, antecipando o disposto no art. 88 da Lei 3.938/66. Tratando-se, o ICMS, de imposto sujeito a lançamento por homologação, esse crédito está sujeito a exame pelo Fisco, no prazo de cinco anos, conforme § 4° do art. 150 do CTN. Caso não seja considerado correto, o valor correspondente será exigido de ofício, acrescido de multa, juros e correção monetária.

                   Essa forma de restituição somente se aplica a restituição decorrente de erro de fato, aplicando-se aos erros mais simples e banais ocorridos na escrituração dos livros fiscais ou no preenchimento de documento de arrecadação.

                   Mas o que seria um erro de fato? Conforme De Plácido e Silva (Vocabulário Jurídico, 26ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005), erro de fato (error facti) consiste em “uma falsa idéia sobre o exato sentido das coisas, crendo-se numa realidade que não é verdadeira”. Pode ser acidental ou substancial. Será acidental quando a falsa idéia é “sobre as qualidades secundárias da coisa”, não se mostrando como determinante do ato.

                   Mais importante é o erro substancial (error in substantia) “é o que ataca a substância ou essência do próprio ato, tendo sido o causador, de que ele se fizesse”.

                   Dispõe o Código Civil (2002):

                   “Art. 138. O erro é substancial quando:

                   I – interessa à natureza do negócio, ao objeto principal da declaração, ou a alguma das qualidades a ele essenciais;

                   II – concerne à identidade ou à qualidade essencial da pessoa a que se refira a declaração da vontade, desde que tenha influído nesta de modo relevante;

                   III – sendo de direito e não implicando recusa à aplicação da lei, for o motivo único ou principal do negócio jurídico”.

                   “Assim, o erro substancial é o que recai sobre a substância ou essência do negócio, do objeto ou da pessoa, em suas qualidades essenciais, não em suas qualidades acessórias ou acidentais”. Acrescenta Silvio Rodrigues (Direito Civil, vol 1, 34ª ed, São Paulo: Saraiva, 2007, p. 188):

                   “Diz a lei serem anuláveis os atos jurídicos quando as declarações de vontade emanarem de erro substancial. Conforme define a doutrina, erro substancial é aquele de tal importância que, se fosse conhecida a verdade, o consentimento não se externaria”.

                   Em matéria de ICMS, podemos considerar como acidentais e, portanto, passíveis de autocorreção pelo sujeito passivo, nos termos do art. 33 do RICMS/SC, aqueles originados da transferência equivocada de dados para os livros fiscais ou documentos de arrecadação tributária. Já os erros ocorridos nas variáveis que determinam o valor do imposto tais como: base de cálculo, alíquota, diferença de preço, quantidade, valor da operação ou da prestação; nos dados cadastrais que implique mudança do remetente ou do destinatário; ou na data de emissão ou de saída que implique de mudança no momento da ocorrência do fato gerador serão erros substanciais. O art. 33 refere-se expressamente a erro na “escrituração dos livros fiscais ou no preenchimento de documento de arrecadação”, ou seja, ao erro de fato acidental.

                   No caso de erro de fato substancial, o tributo somente poderá ser restituído após demonstrado que encargo tributário não foi repassado ao contribuinte de fato ou de que o contribuinte de juri foi por ele autorizada a pleitear a restituição.

5.9. Tributação sobre o consumo: os impostos não-cumulativos

                   A tributação sobre o consumo pode ser monofásica (incide um única vez, como nos antigos impostos únicos sobre minerais ou sobre combustíveis etc.) ou plurifásica (incide em todas as fases de comercialização). Esta última, por sua vez, pode ser cumulativa (antigo IVC) ou não-cumulativa (ICMS, IPI).

                   O que distingue os tributos não cumulativos é o direito do adquirente creditar-se do imposto que onerou a fase(s) anterior(es) de comercialização. Dispõe o art. 155, § 2°, I, da Constituição Federal  que o ICMS “será não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores por este ou outro Estado ou pelo Distrito Federal”.

                   O crédito do ICMS é, então, imposto pago sobre a mesma mercadoria em etapas anteriores. Não se trata propriamente de um “crédito” que o contribuinte tenha contra a Fazenda, mas de um direito de compensar com o imposto devido; é um crédito vocacionado a compensar os débitos tributários. Por isso que não havendo débito, não há crédito. O inciso II, “b” do dispositivo constitucional citado determina que “a isenção ou não incidência, salvo determinação em contrário da legislação, acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores”.

                   O mecanismo da não-cumulatividade é descrito por Roque Antonio Carrazza (ICMS. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 209) nos seguintes termos: “O realizador da operação ou prestação tem o direito constitucional subjetivo de abater do montante de ICMS a recolher os valores cobrados (na acepção acima fixada), a esse título, nas operações ou prestações anteriores. O contribuinte, se for o caso, apenas recolhe, em dinheiro, aos cofres públicos a diferença resultante da operação matemática”.

                   A restituição de ICMS recolhido indevidamente submete-se à regra do art. 166 do CTN porque é um imposto indireto que onera indiretamente a riqueza das pessoas, na medida em que estas a gastam em consumo. Mas ele também é um imposto não cumulativo o que permite ordenar a restituição do imposto na forma de crédito, nos termos do art. 80 da Lei 3.938/66 ou do art. 33 do RICMS-SC. Temos tratamentos tributários diversos para a restituição de impostos diretos, impostos indiretos não-cumulativos ou impostos indiretos que não sejam não-cumulativos.

                   O ICMS é imposto indireto porque visa onerar o contribuinte de fato (consumidor) e não o contribuinte de jure (empresário). Conforme Humberto Ávila (ICMS como imposto sobre o consumo. Inocorrência de prestação onerosa de serviço de comunicação no caso de inadimplemento do consumidor. RDDT 186: 110):

                   “Ao regrar o referido imposto dessa forma, de modo que a carga tributária não seja acumulada nas várias fases do ciclo econômico, a Constituição Federal estabelece indiretamente que ela deve ser suportada pelos consumidores finais, e não pelo comerciante ou pelo prestador de serviços. Trata-se, portanto, de tributo indireto que onera o consumo, não devendo o prestador arcar com o valor do tributo, mas sim o consumidor”.

                   “Note-se que um imposto indireto, baseado na repercussão, que deve recair economicamente sobre o consumidor e não sobre o empresário, deve ser relativamente igual para todos os empresários que se encontrem em situação concorrencial, de maneira a garantir a neutralidade concorrencial (Wettbewerbsneutralität). Isso significa que os preços devem ser proporcionalmente onerados da mesma forma pelo imposto, de modo que a carga tributária incidente não funcione como fator de custo para o empresário. Em outras palavras, o dever de neutralidade concorrencial do referido imposto é uma consequência evidente da sua qualificação como imposto indireto que onera o consumidor final e não o empresário”.

5.10. Substituição tributária: um caso particular de restituição do indébito.

                   Entende-se que há substituição tributária quando a relação jurídico-tributária se estabelece originalmente entre o Estado e terceira pessoa “vinculada ao fato gerador da respectiva obrigação” (CTN, art. 128), diversa do contribuinte, ou seja, de quem tenha “relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador” (art. 121, par. único, I) e, por isso, se torna responsável.

                   A substituição tributária no ICMS, graças ao mecanismo da não-cumulatividade, pode compreender operações ou prestações (LC 87/96, art. 6°, § 1°) antecedentes (“para trás” ou regressiva), concomitantes ou subseqüentes (“para a frente” ou progressiva).

                   Na substituição tributária “para trás”, como os ocupantes das posições anteriores na cadeia de produção e circulação de mercadoria são substituídos na obrigação de pagar o tributo pelos ocupantes das posições posteriores, não há muito o que observar quanto ao direito ao pedido de restituição, que será feito por quem de fato recolheu o tributo.

                   No entanto, na substituição tributária por operações subseqüentes ou “para a frente”, por disposição expressa da lei (art. 10), a restituição do imposto recolhido por substituição tributária (pelo substituto) cabe ao substituído, no caso do “fato gerador presumido não se realizar”.

                   A substituição tributária “para a frente” constitui exceção à regra de que quem tem legitimidade para pedir restituição é quem pagou ao Erário numerário a título de tributo.

6. Considerações finais

                   A restituição de tributo pago indevidamente depende da resposta a algumas perguntas:

                   a) houve pagamento de tributo e esse pagamento era indevido? ou tornou-se indevido (decisão judicial)?

                   b) ocorreu a decadência do direito de pleitear a restituição?

                   Já a aplicação do art. 166 do CTN depende ainda da resposta a mais essas perguntas:

                   c) o imposto pago indevidamente era indireto? caso afirmativo, presume-se que o ônus tributário foi transferido ao contribuinte de fato;

                   d) o contribuinte de jure conseguiu provar que não transferiu o ônus tributário, tendo assumido o respectivo encargo? caso negativo, está autorizado pelo contribuinte de fato a pedir a restituição?

                   A autorização enseja ao contribuinte de fato a recuperação do contribuinte de jure da quantia restituída e por ele suportada.

                   O ônus da prova do pagamento indevido cabe ao requerente.

                   O ônus da prova de que assumiu o encargo e não o transferiu ao contribuinte de fato cabe ao contribuinte de jure.

                   A restituição do imposto recolhido indevidamente sofre correção monetária a partir do pagamento indevido e rende juros a partir da decisão que reconhecer o direito à restituição.

                   A restituição pode ser em dinheiro ou sob a forma de compensação com tributos devidos pelo requerente. No caso de impostos não-cumulativos, pode ser deferida sob a forma de crédito. No caso do ICMS, tratando-se de erro de fato acidental, pode ser efetuada pelo próprio contribuinte, sujeita à ulterior verificação pelo Fisco, inclusive quanto à prova da não transferência do respectivo encargo ao contribuinte de fato.

À consideração superior.

 

Getri, em Florianópolis, 9 de maio de 2022.

 

Thiago Fernandes Justo

Auditor Fiscal da Receita Estadual

 

DE ACORDO. À apreciação da Diretora de Administração Tributária.

Getri, em Florianópolis,

 

Fabiano Brito Queiroz de Oliveira

Gerente de Tributação

 

APROVO a proposta de Nota Técnica. Encaminhe-se para as devidas providências.

Diat, em Florianópolis,

 

Lenai Michels

Diretora de Administração Tributária