ESTADO DE SANTA CATARINA

SECRETARIA DE ESTADO DA FAZENDA

DIRETORIA DE ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA

GERÊNCIA DE TRIBUTAÇÃO

 

 

NOTA TÉCNICA N° 010/2013

 

O papel do Fisco estadual no combate à “pirataria”

 

1. Introdução:

       A presente nota técnica elaborada pela Gerência de Tributação (Getri) decorre de demanda apresentada pela Gerência de Fiscalização (Gefis), ambas integrantes da estrutura da Diretoria de Administração Tributária (Diat). O labor tem por objetivo delinear os contornos legais de possível ação fiscal a cargo da Secretaria de Estado da Fazenda (SEF) junto ao programa de combate à comercialização de produtos pirateados desenvolvido pelo Conselho Estadual de Combate à Pirataria – Cecop.

       Nesse contexto, a Cecop que pretende, com o apoio da SEF, combater a contrafação que atinge produtos têxteis catarinenses, tem o objetivo de proteger as marcas catarinenses e, por via de conseqüência, a indústria do Estado.

       De início, devemos distinguir entre a ação da Secretaria de Estado da Fazenda (SEF) e a ação da Diretoria de Administração Tributária (Diat). Embora esta última seja órgão da primeira, sua função precípua é a fiscalização de tributos estaduais e a constituição dos créditos tributários dela decorrente. Sem prejuízo da atuação de outros órgãos da Fazenda, a participação da Diat em qualquer ação da Cecop será necessariamente de caráter secundário e subordinado especificamente à fiscalização de tributos. O combate à pirataria interessa à Diat apenas na medida em que tal atividade envolva sonegação de tributos.

 

2. Contrafação ou “pirataria”:

2.1. O programa de combate à “pirataria” em Santa Catarina:

       O Cecop foi criado pela Lei Complementar 464, de 3 de dezembro de 2009, com a finalidade de “promover e coordenar as ações de enfrentamento à pirataria, à sonegação fiscal dela decorrente e demais delitos contra a propriedade intelectual”.

       De se destacar que o enunciado prescrito pelo legislador estadual atribuindo ao Cecop a competência para promover e coordenar as ações de enfrentamento à sonegação fiscal decorrente da “pirataria” não prevalece frente ao mandamento constitucional de que esse mister (fiscalizar tributos) compete exclusivamente às administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (item 3 desta NT).  

       O art. 3º do referido pergaminho define pirataria como o “ato de reprodução não autorizada ou abusiva de objeto protegido pela propriedade intelectual, bem como outro ato que permita a circulação ou utilização do objeto pirateado para fins comerciais ou não, conforme o disposto na legislação federal pertinente”.

       Seriam atribuições do Cecop, entre outras: estudar e propor medidas destinadas ao combate de crimes contra a propriedade intelectual; atuar em conjunto com órgãos e entidades públicas e privadas, na coleta, na análise e no compartilhamento de informações; estabelecer mecanismos para o recebimento de denúncias e de sugestões referentes ao combate à pirataria; incentivar e apoiar os órgãos públicos nas ações voltadas à prevenção e à repressão aos crimes contra a propriedade intelectual; promover a realização de campanhas educativas de combate aos crimes contra a propriedade intelectual; fornecer estudos e informações a serem veiculadas nos meios de comunicação destinadas ao esclarecimento da opinião pública sobre os efeitos danosos da pirataria.

 

2.2. Delimitação do termo “pirataria”

       O termo “pirataria” não é jurídico, mas uma expressão de linguagem comum que deriva das práticas pretéritas em águas internacionais levadas a efeito à margem das leis das sociedades organizadas. 

       Na acepção atual, o termo “pirataria” se refere à violação ao direito de propriedade imaterial. De forma mais ampla, em linguagem popular, pirataria é o ato de copiar ou reproduzir, sem autorização do titular do direito de propriedade de livros, gravações de som ou imagem, perfumes, cosméticos, selos de identificação de produtos, logotipos, marcas ou patentes, dentre outros.

       Então, pode-se conceituar “pirataria” como a conduta lesiva ao direito de propriedade imaterial, ou seja a propriedade de bens incorpóreos, razão por que destacamos a seguir algumas assertivas doutrinárias de Fábio de Ulhoa Coelho para que se possa identificar o tipo de bem lesionado na prática da “pirataria”.

“São bens integrantes da propriedade industrial: a invenção, o modelo de utilidade, o desenho industrial e a marca. O direito de exploração com exclusividade dos dois primeiros se materializa no ato de concessão da respectiva patente (documentado pela “carta-patente”); em relação aos dois últimos, concede-se o registro (documentado pelo “certificado”). A concessão da patente ou do registro compete a uma autarquia federal denominada Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI” [1].

                   Estão compreendidas no conceito de propriedade industrial, tanto as invenções e sinais distintivos da empresa, como as obras científicas, artísticas, literárias e outras[2]. Contudo, o ato administrativo pelo qual o inventor ou o empresário tem o seu direito industrial reconhecido, ao contrário da propriedade autoral, é de natureza constitutiva e não declaratória. Desse modo, o direito de exclusividade será titularizado por quem pedir a patente (invenção) ou o registro (marca) em primeiro lugar, não importando quem tenha sido o primeiro a inventar o objeto, projetar o desenho ou utilizar comercialmente a marca[3].

                   No caso dos bens que integram a propriedade autoral, o direito de exclusividade do criador da obra científica, literária ou artística (ou de programa de computador) não decorre de ato administrativo concessivo, mas da criação mesma[4].

                   Nos estados de direito, a propriedade imaterial ou incorpórea é protegida por instrumentos legislativos próprios[5].

 

 2.3. Legislação de proteção à propriedade intelectual industrial:

       Verificado que a “pirataria” afronta o direito à propriedade imaterial, insta relacionar quais as criações do espírito humano que, por serem tidos com bens móveis pelo direito pátrio são passíveis de apropriação pelo homem e, por conseguinte, protegidos juridicamente pelo Estado Brasileiro. Vejamos:

       As idéias contidas nas obras literárias, artísticas e científicas são bens imateriais cuja propriedade intelectual é protegida de acordo com a Lei 9.610/98, independente de serem registradas em órgão oficial.

       As idéias e soluções contidas nas invenções e nos modelos de utilidade são bens imateriais cuja propriedade intelectual é protegida de acordo com a Lei 9.279/96, e dependem de patente concedida pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial.

       As marcas (títulos de estabelecimento e sinais de propaganda), os desenhos industriais e indicadores geográficos são bens imateriais protegidos de acordo com o disposto na Lei 9.279/96, e dependem de prévio registro no Instituto Nacional da Propriedade Industrial.

       Entre os diversos instrumentos jurídicos (sanções civis, administrativas e criminais) disponibilizados ao cidadão como proteção à propriedade imaterial, destaca-se, por oportuno, a criminalização das condutas que possam afetar o pleno uso, gozo, fruição e disposição  dos bens imateriais pelo proprietário. Compulsando-se o ordenamento jurídico vigente destacam-se as seguintes tipificações penais relativas à “pirataria”:  

       a)   as  condutas criminosas contra a propriedade intelectual sobre as obras literárias, artísticas e científicas encontram tipificação no art. 184 caput e §§ do Código Penal (Decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940);

       b)    as condutas criminosas contra a propriedade das idéias criadoras de inventos e utilidades industriais, das marcas de natureza comercial nos arts. 183 a 194 da Lei 9.279/96.

       Girando o foco da análise, sabe-se que no Direito Brasileiro a persecução penal se dá mediante a ação penal. Esse instrumento processual, segundo o Código de Processo Penal, poderá ter natureza pública ou privada, sendo que a ação penal pública subdivide-se em condicionado ou incondicionada.  

       É cediço também que a vinculação da conduta delituosa ao tipo de ação penal se dá segundo o grau de “lesividade social” da conduta tipificada; onde as condutas com maior “lesividade social” terão sua persecução criminal primordialmente por meio de ação penal pública incondicionada a cargo do Ministério Público; já àquelas de menor “lesividade social” dar-se-ão somente mediante ação privada a cargo da vítima ou ofendido. Restando, por óbvio, a ação penal condicionada à representação da vítima para as condutas cujo grau de lesividade seja reconhecido pelo legislador com mediano.

       Dito isto, cabe registrar que, regra geral, os denominados crimes de “pirataria” têm sua persecução penal mediante ação penal privada (CP. art. 186 e Lei 9.279/96, art. 119).

       Há exceção apenas para os crimes tipificados previstos nos §§ 1o e 2o do art. 184 do CP, ou quando o crime contra a propriedade intelectual for cometido em desfavor de entidades de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou fundação instituída pelo Poder Público, quando a ação será pública incondicionada. E, também, no caso do crime tipificado no § 3o do art. 184 do CP quando então a ação será pública, porém condicionada à representação da vítima.

                    Ad argumentandum tamtum, é oportuno salientar que a prática da “pirataria” também poderá afetar direitos de terceiros, por exemplo, os direitos dos consumidores, os quais se encontram disciplinados na Lei 8.070/90 – Código de Defesa do Consumidor -  CDC. Esse Codex afirma que são impróprios ao uso e consumo os produtos (...) falsificados,(...) nocivos à vida ou à saúde, perigosos ou, ainda, aqueles em desacordo com as normas regulamentares de fabricação, distribuição ou apresentação. Já a Lei 8.137/90, complementa a defesa do consumidor, tipificando os crimes contra as relações de consumo. Essa lei dispõe constituir crime contra as relações de consumo vender, ter em depósito para vender ou expor à venda ou, de qualquer forma, entregar matéria-prima ou mercadoria, em condições impróprias ao consumo. (Art. 7°, IX). Crime esse que, segundo o art. 15 do mesmo pergaminho legal, é de ação penal pública a ser promovida pelo Ministério Público.

                    Ademais, vale registrar também que a fiscalização da aplicação do CDC é de competência dos órgãos federais, estaduais, do Distrito Federal e municipais com atribuição específica para fiscalizar e controlar o mercado de consumo (art. 55. § 3º); sendo, portanto, atividade alheia ao rol de atribuições conferidas às Administrações Tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

 

3. Atribuições e objetivos institucionais do Fisco:

       Dispõe o art. 37, XXII, da Constituição Federal que as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios são atividades essenciais ao funcionamento do Estado e exercidas por servidores de carreiras específicas. O mesmo artigo prevê prioridade nos recursos para a realização de suas atividades e que devem atuar de forma integrada, inclusive com o compartilhamento de cadastros e de informações fiscais, na forma de lei ou convênio.

       As atividades a que se refere a Lei Suprema é precisamente a aplicação, de forma imediata, da legislação tributária. Essa aplicação se efetiva mediante a fiscalização e arrecadação de tributos e, principalmente, pela constituição do crédito tributário.

       Com efeito, o art. 3º do Código Tributário Nacional determina que o tributo será cobrado “mediante atividade administrativa plenamente vinculada”. Ou seja, a cobrança do tributo não admite qualquer parcela de discricionariedade por parte da administração.

       O art. 142 do mesmo diploma legal dispõe que compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário.  O lançamento é conceituado como o procedimento administrativo que constitui o crédito tributário, atividade esta reservada aos servidores de carreira específica da administração tributária.

       A atividade administrativa de lançamento, segundo o parágrafo único do mesmo artigo, é vinculada e obrigatória sob pena de responsabilidade funcional.

       A fiscalização, conforme parágrafo único do art. 194 do CTN, “aplica-se às pessoas naturais ou jurídicas, contribuintes ou não, inclusive às que gozem de imunidade tributária ou de isenção de caráter pessoal”.

       Em Santa Catarina, o art. 7º da Lei Complementar 442, de 13 de maio de 2009, que estrutura a carreira de Auditor Fiscal da Receita Estadual, trata das competências privativas do cargo. Assim compete ao AFRE:

       a) constituir o crédito tributário, mediante procedimento administrativo de lançamento dos tributos de competência do Estado, bem como a homologação dos procedimentos adotados pelo sujeito passivo, conforme disposto nos arts. 142, 147, e 150 da Lei federal nº 5.172, de 25 de outubro de 1966;

       b) impor penalidade por infração de obrigação tributária principal ou acessória;

       c) verificar o cumprimento das obrigações tributárias por parte do contribuinte ou responsável, relativas a tributo estadual, inclusive (i) o exame e auditoria da escrita fiscal e contábil do sujeito passivo e a realização de outros procedimentos de fiscalização e vistorias no estabelecimento, com a finalidade de verificar o cumprimento das obrigações tributárias; (ii) apreensão de bens e documentos, e a nomeação de depositário, nas hipóteses previstas na legislação tributária; (iii) procedimentos de fiscalização em relação às mercadorias em trânsito ou à prestação de serviço de transporte; e (iv) requisição de informações que se relacionem aos bens, negócios ou atividades de terceiros, às pessoas e entidades legalmente obrigadas;

       d) auditar a rede arrecadadora e a aplicação de penalidades decorrentes do descumprimento da legislação tributária pertinente; e

       e) decidir, em instância singular ou colegiada, na condição de representante do Estado, sobre processo contencioso-fiscal.

       O § 3º desse artigo acrescenta que o ocupante do cargo de Auditor Fiscal da Receita Estadual, por exercer função essencial ao funcionamento do Estado, nos termos dos incisos XVIII e XXII do art. 37 da Constituição da República Federativa do Brasil, tem no desempenho do cargo prerrogativa de precedência sobre os demais setores administrativos, dentro de sua área de competência e jurisdição.

       Em síntese, o que fica evidente é que compete exclusivamente às administrações tributárias a aplicação da legislação tributária.

 

3.1. O princípio da impessoalidade:

       O lançamento é, portanto, o procedimento administrativo que constitui o crédito tributário. Como procedimento administrativo, subordina-se aos princípios que regem a Administração Pública, referidos no art. 37 da Constituição da República, entre os quais está o princípio da impessoalidade.

       O princípio da impessoalidade significa que a Administração deve tratar igualmente todos os administrados, sem demonstrar preferências ou antipatias. Todos são iguais perante a Lei; todos são iguais perante a Administração. Conforme magistério de Celso Antônio Bandeira de Mello “a Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas” [6].

       No mesmo sentido, leciona Diógenes Gasparini: “A atividade administrativa deve ser destinada a todos os administrados, dirigida aos cidadãos em geral, sem determinação de pessoa ou discriminação de qualquer natureza” [7].

       Assim, pelo princípio da impessoalidade, a ação fiscal não pode ser deliberadamente deflagrada para provocar qualquer tipo de discriminação entre contribuintes, seja ela positiva ou negativa. Ou seja, a ação fiscal não pode ser deflagrada contra determinado ramo de atividade ramo de atividade econômica ou segmento de mercado, visando prioritariamente beneficiar possíveis concorrentes ou interesses particulares diversos; não pode também ser utilizada como velado instrumento de perseguição (política econômica etc.).

 

3.2. O princípio da eficiência:

       O princípio da eficiência administrativa foi acrescido ao art. 37 da Constituição pela Emenda Constitucional 19, de 1998. Sobre o conteúdo desse princípio, esclarece o ilustrado escólio de Diógenes Gasparini:

“As atribuições devem ser executadas com perfeição, valendo-se das técnicas e conhecimentos necessários a tornar a execução a melhor possível, evitando sua repetição e reclamos por parte dos administrados. Ademais, a realização cuidadosa das atribuições evita desperdícios de tempo e de dinheiro públicos, tão necessários na época atual. Por fim, tais competências devem ser praticadas com rendimento, isto é, com resultados positivos para o serviço público e satisfatório para o interesse da coletividade”  [8].

       Os procedimentos fiscalizatórios desenvolvidos pela Administração Tributária devem ser executados com eficiência, isto é, buscando o melhor resultado possível com os recursos disponíveis (otimização). Entre esses recursos, está o trabalho do Auditor Fiscal, medido em horas de trabalho. Cuida-se de mão-de-obra cara para o Estado que deve ser utilizada da melhor forma possível. Sobretudo, não deve ser desviada para atividades estranhas à sua missão principal que é a fiscalização e arrecadação de tributos e a constituição do crédito tributário.

       A Diat tem feito grandes progressos na busca da maior eficiência. A constatação de que a atividade econômica é concentrada e que a arrecadação do ICMS mantém com ela uma relação de proporcionalidade, levou a adoção de uma fiscalização mais preventiva que repressiva. Com efeito, é mais eficiente identificar a evasão tributária quando ainda é de pouca monta do que tentar cobrar créditos tributários de valores elevados.

       Desse modo, ao lado das ações fiscalizadoras propriamente ditas, desenvolveram-se ações de monitoramento e acompanhamento, com ênfase nos grandes contribuintes.

       Outra medida de grande impacto na racionalização do trabalho de fiscalização foi a criação de Grupos Especialistas Setoriais (GES) em que a alocação dos recursos humanos do Fisco se faz por setores de atividade econômica. O estudo minucioso e sistemático de determinado ramo de atividades e de suas especificidades trouxe ao Fisco considerável grau de eficiência.

       O desvio dessa mão-de-obra qualificada e especializada para outras atividades, estranhas à fiscalização e arrecadação de tributos deve ser avaliada em termos do comprometimento de sua eficiência e de retorno para o Estado.

       A pirataria como atividade delituosa diz respeito diretamente aos organismos policiais e de proteção à propriedade intelectual. Para o Fisco, sua importância é secundária, interessando apenas enquanto representar evasão de tributos.

 

4. Pecunia non olet:

       Dispõe o art. 118, I, do Código Tributário Nacional que “a definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo-se da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes, responsáveis ou terceiros, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos”.

       O dispositivo citado contém o chamado “princípio do non olet”, denominação que rememora episódio do reinado do Imperador Vespasiano (instituição de um tributo sobre as cloacas, donde a expressão pecunia non olet = “o dinheiro não tem cheiro”).

       O tributo, como preconiza o art. 3º do CTN, somente admite como fato gerador atos lícitos. O ato ilícito dá causa à penalidade, jamais ao tributo. Assim, a ilicitude a que se refere o art. 118, I, que não afasta a incidência do tributo, é uma ilicitude que não compõe a descrição da respectiva hipótese de incidência (para prestigiarmos a nomenclatura adotada por Geraldo Ataliba). Sobremodo esclarecedor sobre o tema é o seguinte escólio de Leandro Paulsen:

“Jamais um ato ilícito estará descrito na norma como hipótese de incidência da obrigação tributária. Mas se algum fato ilícito implicar situação que, por si só, não seja ilícita e que esteja prevista como hipótese para a imposição tributária, a ilicitude circunstancial não terá qualquer relevância, não viciará a relação jurídica tributária”[9].

       Já Aliomar Baleeiro ensinava que uma vez praticado o ato jurídico ou celebrado o negócio que a lei tributária erigiu em fato gerador, surge a obrigação entre o contribuinte e o Fisco. Essa obrigação “subsiste independentemente da validade ou invalidade do ato” [10].

       Esse mesmo ensinamento, encontramos em Hugo de Brito Machado quando diz que “é admissível a cobrança de um tributo incidente sobre fato que seja, em regra lícito, praticado em circunstâncias que o fazem ilícito”. Mas essa ilicitude deve ser circunstancial; não deve ser elemento definidor do fato jurígeno tributário. Tanto é assim, que, prossegue o mesmo autor, “o que naquela situação existe de ilícito poderia deixar de existir sem que se alterassem aqueles elementos que concretizam o fato gerador do tributo” [11].

       Quando dizemos que a ilicitude não contamina o ato (pecunia non olet), devemos entender todo o alcance do princípio e suas limitações. Não é o caso de legitimar o ilícito, mediante participação do Estado em seu resultado. O Estado deve ser ético, pela sua própria natureza. Caso contrário, o dinheiro do tributo virá envolto no odor das matérias fétidas que lhe deram origem. Nesse sentido, insurge-se a pena de Misabel Derzi, em sua competente atualização de Aliomar Baleeiro.

“Não seria ético, conhecendo o Estado a origem criminosa dos bens e direitos, que legitimasse a ilicitude, associando-se ao delinqüente e dele cobrando uma quota, a título de tributo. Portanto, põe-se alternativas excludentes, ou a origem dos recursos é licita, cobrando-se em conseqüência o tributo devido e sonegado, por meio de execução fiscal, ou é ilícita, sendo cabível o perdimento dos bens e recursos, fruto da infração” [12].

       Ao que pondera Luciano Amaro:

“Esse preceito deve ser conciliado com o art. 116, I. Se os efeitos de certo ato integrarem a definição legal do fato gerador, a ausência desses efeitos, no plano concreto, leva, logicamente, a reconhecer-se o não aperfeiçoamento do próprio fato gerador e, via de conseqüência, a inexistência de obrigação tributária” [13].

       Contudo, é precisamente o princípio do non olet que justifica a participação do Fisco no combate à pirataria.

       Incide o ICMS sobre operações de circulação de mercadorias, sejam estas pirateadas ou não. Uma vez que for constatada a ocorrência, concretamente, do fato gerador do ICMS, o tributo torna-se exigível. A ilicitude do comportamento do contribuinte – no caso, a contrafação – não afasta a exigibilidade do imposto.

       Nessa mesma linha de raciocínio, devem ser repelidas as propostas de cassação da inscrição no cadastro de contribuintes do ICMS do comerciante apanhado comercializando mercadorias pirateadas. O cadastro de contribuintes foi criado para fins de controle da arrecadação de tributos e não pode ser utilizado para outras finalidades e, menos ainda, como punição por delitos que nem ao menos tem natureza tributária. Interessa ao Fisco que todos os contribuintes estejam cadastrados. A alternativa para o comerciante, após a cassação da inscrição no CCIMS, seria a informalidade, o que não interessa ao Fisco.

       Por outro lado, a apreensão e destruição da mercadoria “pirateada” podem tornar insubsistente a constituição do crédito tributário, na medida em que ficar descaracterizada a operação de circulação de mercadoria. Nesse caso, a atividade ilícita do contribuinte (pirataria) deixa de ter interesse para o Fisco, cuja participação perde sua razão de ser, por inocorrência de qualquer fato gerador de natureza tributaria.

 

5. Tributação e financiamento de políticas sociais:

       O moderno estado democrático de direito justifica sua existência pelo fim que lhe compete: a consecução do “bem comum”, materializado, a grosso modo pela execução de políticas sociais (interesse público). Essa a finalidade primordial da arrecadação tributária. Por esse motivo, as atividades de fiscalização e arrecadação de tributos (papel institucional do Fisco) não devem ceder lugar ao patrocínio de interesse privado. 

       Não é demais lembrar que os tributos constituem a principal fonte de financiamento do Estado moderno e, por conseguinte, das políticas sociais desenvolvidas por este mesmo Estado, na consecução de seu objetivo primordial que é a realização do bem comum. Conforme Ricardo Lobo Torres:

“A atividade financeira configura e delimita uma certa faceta do Estado Moderno, que é a do Estado Financeiro, que se desenvolve desde o fenecimento do feudalismo até os nossos dias, exibindo contorno diferente em suas várias fases: Estado Patrimonial, Estado de Polícia, Estado Fiscal, Estado Social Fiscal e Estado Socialista” [14].

       Segundo esse autor, o Estado Fiscal caracteriza-se precisamente pelo “novo perfil da receita pública”, baseado na dívida pública e principalmente nos tributos – “ingressos derivados do trabalho e do patrimônio do contribuinte – ao revés de se apoiar nos ingressos originários do patrimônio do príncipe”. Já com o advento do Estado Social Fiscal, a receita tributária passa a “se impregnar da finalidade social ou extrafiscal”, enquanto, pela vertente da despesa, “a atividade se desloca para a redistribuição de rendas, através do financiamento da entrega de prestações de serviços públicos ou de bens públicos, e para a promoção do desenvolvimento econômico, pelas subvenções e subsídios”.

       O ordenamento tributário brasileiro identifica os impostos como a espécie do gênero tributo destinado ao financiamento do setor público como um todo: a destinação da receita é definida pela lei orçamentária anual. Por isso mesmo, o art. 167, IV, da Constituição da República, veda expressamente a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvada as vinculações previstas pela própria Constituição, entre as quais, destacam-se as despesas com saúde (art. 198, § 2º) e com educação (art. 212). Saúde e educação, direito de todos e dever do Estado, alinham-se entre os direitos do cidadão brasileiro garantidos pela Constituição.

       Essas garantias constitucionais integram o conceito de “bem comum” que Norberto Bobbio identifica com “o princípio edificador da sociedade humana” e, concomitantemente, o fim para o qual ela deve orientar-se. O autor distingue o bem comum do bem individual e do bem público. O bem comum é o bem dos indivíduos pelo simples fato de serem membros de um Estado. Daí porque o bem comum é o valor político por excelência.           

“Toda atividade do Estado, quer política quer econômica, deve ter como objetivo criar uma situação que possibilite aos cidadãos desenvolverem suas qualidades como pessoas; cabe aos indivíduos, singularmente impotentes, buscar solidariamente em conjunto este fim comum” [15].

       O delineamento do conteúdo desse “bem comum”, devemos pesquisar no próprio texto constitucional que elege como um dos fundamentos da República “a dignidade da pessoa humana” (CF, art. 1º, III). Mais adiante, o art. 3º enumera os “objetivos fundamentais” – para os quais deve ser direcionada toda a atividade do Estado – dos quais destacamos a construção de uma sociedade “livre, justa e solidária” (art. 3º, I) e a erradicação da pobreza e da marginalização (art. 3º, III).

       Paulo Bonavides nos fala da superação do liberalismo pelo Estado Social. O Estado Liberal trouxe os ideais de liberdade e da separação dos poderes, como fundamentos de um Estado compatível com um capitalismo individualista e gerador de desigualdades. O Estado Social – que difere fundamentalmente do Estado Socialista por preservar a liberdade como valor individual – representa a superação do próprio capitalismo.

“Essa liberdade que o mundo clássico conheceu e praticou, interessa em nossos dias, fundamentalmente, aos necessitados do quarto estado, componentes da grande maioria, à massa anônima dos que não possuem, dos que se voltam messianicamente para um milagre da melhoria social e sentem que liberdade se identifica também com emancipação econômica, ou, se não for esta de imediato possível, com um ideal ao menos aproximado de certeza, paz e igualdade relativa no nível geral das condições materiais de existência” [16].

       A atividade de fiscalização e arrecadação de tributos está empenhada em viabilizar a sustentabilidade do Estado e, por conseguinte, da realização do bem comum, seja como princípio edificador da sociedade, seja como ideal a ser perseguido. O papel crucial dessa função mereceu do constituinte a prioridade a que se refere o inciso XXII do art. 37 da Carta. Essa prioridade não constitui um privilégio dado a uma categoria funcional, mas a incumbência de assegurar os recursos necessários para que o Estado cumpra a sua vocação.

 

6. Autuação fiscal: procedimentos operacionais:

       O princípio da supremacia do interesse público sobre os interesses privados, leciona Celso Antônio Bandeira de Mello, é princípio geral de direito inerente a qualquer sociedade, constituindo a própria condição de sua existência. Prossegue esse autor:

“Como expressão dessa supremacia, a Administração, por representar o interesse público, tem a possibilidade, nos termos da lei, de constituir terceiros em obrigações mediante atos unilaterais. Tais atos são imperativos como quaisquer atos do Estado. Demais disso, trazem consigo a decorrente exigibilidade, traduzida na previsão legal de sanções ou providências indiretas que induzam o administrado a acatá-las. Bastas vezes ensejam, ainda, que a própria Administração possa, por si mesma, executar a pretensão traduzida no ato, sem necessidade de recorrer previamente às vias judiciais para obtê-la. É a chamada auto-executoriedade dos atos administrativos”[17].

       Entre esses atos unilaterais do Estado, nos interessa sobremodo o lançamento que constitui o crédito tributário, tornado exigível a respectiva obrigação. O ato administrativo de lançamento só não é dotado de auto-executoriedade, dependendo para tanto do judiciário, mediante a competente ação de execução fiscal.

                  

6.1. A apreensão de mercadorias pelo Fisco estadual: hipóteses e limitações:

       Questão particularmente espinhosa é a apreensão de mercadorias pelo Fisco Estadual. No caso de apreensão seguida de leilão ou doação das mercadorias apreendidas ou ainda de sua destruição, fica a dúvida: a que título o Estado dispõe da coisa de terceiro?

       Conforme dispõe a legislação federal, o Fisco federal tem competência para impor pena de perdimento em determinadas hipóteses (Decreto-lei 37/66, art. 105). Mas, o Fisco estadual não dispõe da mesma competência.

       Ensina Sacha Calmon Navarro Coelho que “apreensão não é sanção, senão ato administrativo levado avante na suposição de que a coisa a apreender é res nullius. É ato que pode ensejar, depois, o perdimento da coisa, se não reclamada”. Acrescenta o mesmo autor que “o fato de a mercadoria estar irregular, em termos fiscais, em tese justifica a apreensão mas não a apropriação pelo Estado” [18].

       A apreensão da mercadoria não dá ao Fisco estadual o direito de dela dispor, por falta de título que justifique a sua propriedade. No máximo, poderá apenas reter a mercadoria até a identificação de seu real proprietário. A esse propósito, comenta Zelmo Denari: “a jurisprudência tem feito um discernimento entre apreensão e redenção, admitindo, em linha de princípio, aquela, e considerando ilegal a retenção das coisas apreendidas, além do tempo necessário para assegurar a prova material da falta” [19].

       Apenas no caso de mercadoria não reclamada ou abandonada (res derelicta) é que o Estado como seu possuidor, revertida a coisa a res nullius (coisa sem dono), poderá dela dispor. “Somente quando as mercadorias transitassem sem documentação, deveria a administração recorrer a apreensão” [20].

       Aliás, a Lei Estadual nº 3.938, de 1966, autoriza em seu art. 119 a apreensão de mercadorias pelo Fisco estadual, mas somente quando essas constituam prova material de infração à legislação tributária. Também preceitua no art. 123 que “presumir-se-á abandonada a mercadoria que não for reclamada dentro de 90 (noventa) dias, contados da apreensão”, aduzindo no parágrafo único que “encerrado o interstício referido neste artigo, a mercadoria será posta à disposição do órgão responsável pelo patrimônio do Estado, para que sejam adotadas as providências cabíveis, sem prejuízo de sua adjudicação pela Fazenda Pública.”

       Ainda, nos termos do art. 122 do mesmo pergaminho, a mercadoria apreendida poderá ser liberada a qualquer tempo, mediante assunção de responsabilidade e ressarcimento ao Estado das despesas decorrentes da apreensão e guarda, quando existentes estas.

       Assim, uma vez lavrada a respectiva notificação de lançamento, a mercadoria deve ser liberada. O Fisco não poderá continuar a retê-la. Nesse sentido, a Súmula 323 do Supremo Tribunal Federal: “É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos”.

       Não discrepam desse entendimento as turmas de direito público do Superior Tribunal de Justiça. Assim, da Primeira Turma, o Recurso em Mandado de Segurança 23.459 SE (RDDT, vol. 168, p. 240):

“1. É indevida a apreensão de mercadoria, ainda que transportada sem nota fiscal, quando houver a lavratura do auto de infração e o lançamento do tributo devido”.

       Por sua vez, a Segunda Turma do mesmo sodalício – Recurso em Mandado de Segurança 21.489 SE (RDDT, vol. 135, p. 205):

“É ilegal a apreensão de mercadoria, ainda que desacompanhada da respectiva nota fiscal, após a lavratura do auto de infração e lançamento do tributo devido”.

       A retenção da mercadoria, conforme ADI 395-0, 2007 (RDDT, vol. 145, p. 181) somente é possível “até a comprovação da posse legítima daquele que a transporta”.

 

6.2. O perdimento da propriedade (mercadoria ou bens) em favor do Estado:          

       A Constituição da República relaciona o direito de propriedade entre os direitos fundamentais (art. 5º, XXII).

       O direito de propriedade está tratado nos arts. 1.228 a 1369 do Código Civil. Conforme dispõe o art. 1.228, o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. Marco Aurélio S. Viana caracteriza o direito de propriedade nos seguintes termos:

“A exploração do objeto se faz dentro de limites naturais, legais e decorrentes da vontade, sendo certo que não se tem como enumerar aprioristicamente todos as faculdades asseguradas ao dominus. Isso leva a doutrina a considerar a propriedade em sua unidade global, como síntese de várias faculdades não determináveis a priori. O que temos, como já o dissemos antes, não é uma soma de faculdades, mas a unidade de todos os poderes conferidos ao proprietário; não é uma série de faculdades determinadas a priori, mas um poder geral, integrado por todos os poderes imagináveis” [21].

       A perda da propriedade ocorre nas hipóteses referidas no art. 1.275 do C.C., entre elas o abandono (inciso III) e a desapropriação (inciso V). Contudo, assegura o art. 5º, LIV, da C.F. que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (de processo of law).

       Conforme ainda o inciso XXIV do mesmo artigo que “a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvada os casos previstos nesta Constituição”.

       Por outro lado, o inciso XXV dispõe que “no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano”. Nesse sentido, o § 3º do art. 1.228 do C.C. determina que “o proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente”.

       Coisa diversa é o confisco, entendido como a apropriação pelo Estado do bem do particular. Em que hipóteses isso pode ocorrer? A Constituição prevê apenas um caso (art. 243): a expropriação de terras onde localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas. Nesse caso, ao contrário da desapropriação, não haverá indenização ao proprietário.

       O confisco da propriedade, ordinariamente, decorre de ilícito. Assim, dispõe o art. 91 do Código Penal que são efeitos da condenação: a) tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime (inciso I) e b) a perda a favor da União do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do ato criminoso (inciso II, alínea “b”).

       O confisco fica restrito ao campo do direito penal, já que, no direito tributário, o confisco é vedado nos termos do art. 150, IV, da Constituição.

       Na área federal, o art. 334 do C.P. tipifica o crime de contrabando (importar mercadoria proibida) ou descaminho (iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo da mercadoria). O Fisco federal aplica administrativamente a pena de perdimento por expressa autorização legal, como vimos acima.

       Em síntese, o Estado somente pode apropriar-se de bens dos particulares, deles dispondo com ânimo de dono, em três hipóteses: 1. Expropriação ou desapropriação, mediante justa indenização; 2. Confisco, devido à prática delituosa; ou 3. Como possuidor da coisa abandonada (res derelicta).

       Por conseguinte, a apreensão da mercadoria “pirateada” não é de competência do Fisco Estadual, devendo ficar por conta dos órgãos competentes, ou mediante determinação da autoridade judiciária, e não do Fisco, sob pena de, neste caso, estar o Fisco patrocinando interesse privado.

       Ademais, sobre a apreensão de mercadorias “pirateadas” extraem-se da Lei 9.279/96 as seguintes disposições:

“Art. 198. Poderão ser apreendidos, de ofício ou a requerimento do interessado, pelas autoridades alfandegárias, no ato de conferência, os produtos assinalados com marcas falsificadas, alteradas ou imitadas ou que apresentem falsa indicação de procedência”.

“Art. 201. Na diligência de busca e apreensão, em crime contra patente que tenha por objeto a invenção de processo, o oficial do juízo será acompanhado por perito, que verificará, preliminarmente, a existência do ilícito, podendo o juiz ordenar a apreensão de produtos obtidos pelo contrafator com o emprego do processo patenteado”.

“Art. 202. Além das diligências preliminares de busca e apreensão, o interessado poderá requerer:

I - apreensão de marca falsificada, alterada ou imitada onde for preparada ou onde quer que seja encontrada, antes de utilizada para fins criminosos; ou

II - destruição de marca falsificada nos volumes ou produtos que a contiverem, antes de serem distribuídos, ainda que fiquem destruídos os envoltórios ou os próprios produtos”.

 “Art. 203. Tratando-se de estabelecimentos industriais ou comerciais legalmente organizados e que estejam funcionando publicamente, as diligências preliminares limitar-se-ão à vistoria e apreensão dos produtos, quando ordenadas pelo juiz, não podendo ser paralisada a sua atividade licitamente exercida”.

“Art. 204. Realizada a diligência de busca e apreensão, responderá por perdas e danos a parte que a tiver requerido de má-fé, por espírito de emulação, mero capricho ou erro grosseiro”.

       Em síntese, a apreensão de mercadorias pirateadas é atribuição do Fisco federal, que não se estende ao Fisco estadual.

       Além disso, a ação do Fisco pode vir a caracterizar o crime de excesso de exação, tipificado nos §§ 1º e 2º do art. 316 do Código Penal. O § 1º contempla duas modalidades: (i) exigir imposto, taxa ou emolumento que sabe indevido e (ii) quando devido, empregar na cobrança meio vexatório ou gravoso, que a lei não autoriza. Já o § 2º preveê a forma qualificada que consiste em praticar, deixar de praticar ou retardar ato de ofício, com infração de dever funcional, cedendo a pedido ou influência de outrem. Conforme Boquimpani, caracteriza o tipo penal a atividade fiscalizatória desenvolvida por razões estranhas ao ingresso de recursos públicos:

“Assim, por exemplo, o poder de praticar o acertamento da relação tributária, exteriorizado em ato administrativo denominado lançamento, só é validamente exercido se atinente a específico dever de tributar. Caso seu uso se prenda a outros escopos, ou caso não tenha a lei cometido ao agente atribuição de realizar o lançamento, estará caracterizado o abuso de poder, ou seja, o manejo não autorizado de prerrogativas relativas à posição de superioridade do interesse público sobre o privado”[22].

       A atuação do Fisco tem por objetivo assegurar o ingresso de receitas de tributos devidos ao Estado, não podendo ser desviada para outras finalidades ou para patrocinar interesses privados, a revelia do interesse público.

 

6.3. Efeitos da apreensão de mercadorias “pirateadas” sobre a constituição do crédito tributário:

       No caso de mercadorias pirateadas, cabe a sua apreensão e destruição, mas não pelo Fisco.  A apreensão cabe às autoridades responsáveis pelo combate à pirataria e com fundamento na legislação respectiva. A apreensão pelas autoridades Fiscais somente é possível A apreensão de mercadorias pelas autoridades Fiscais somente é possível enquanto não identificado seu real proprietário.

       Além de faltar-lhe competência para apreender as mercadorias pirateadas, os agentes do Fisco não estão qualificados para identificar, classificar, e mais ainda para declarar formalmente mercadorias como pirateadas. Nesse sentido, a Cecop encaminhou o Ofício 005/2012 ao Diretor de Administração Tributária, solicitando que os Auditores Fiscais não realizem mais apreensão de mercadorias de origem duvidosa, hipótese em que deveriam comunicar ao Cecop para futura e eventual fiscalização pelo conselho.

       O mesmo ofício sugere que, na devolução das mercadorias, conste do respectivo termo a informação de que este não legaliza as mercadorias que ficam sujeitas a futuras fiscalizações.

       Refere ainda o mesmo ofício que, no caso de apreensão de produtos contrabandeados, devem ser encaminhados diretamente aos depósitos da Receita Federal.

       Naturalmente, não é competência do Fisco estadual realizar a apreensão de mercadorias contrabandeadas e aplicar pena de perdimento, sem que tenha havido uma delegação formal dessas atribuições, conforme dispõe o art. 7º do Código Tributário Nacional.

       Nada impede, entretanto, que o Fisco participe de operações conjuntas com o Cecop e outros órgãos, em que sejam fiscalizadas conjuntamente a evasão de ICMS e a comercialização de produtos pirateados. Vejamos algumas hipóteses:

       O art. 52 da Lei 10.297/1996 prevê multa por “deixar de submeter, total ou parcialmente, operação ou prestação tributável à incidência do imposto”. Cuida-se de verificação no estabelecimento de fato já acontecido. A autoridade fiscal deve cobrar o imposto sonegado, acrescido da multa cabível e de juros moratórios e correção monetária (a Selic compreende tanto os juros de mora quanto a correção monetária) mesmo que decorrente da venda anterior de mercadorias pirateadas (“princípio do non olet”). No caso da mercadoria ser pirateada (sendo possível essa comprovação), a Cecop irá aplicar a penalidade correspondente e, se possível, rastrear o paradeiro da mercadoria pirateada.

       No caso de ter havido recolhimento do ICMS ou da operação ser isenta ou não tributável, mesmo que se trate de mercadoria pirateada, as autoridades fiscais estaduais nada poderão fazer.

       O art. 60, I, da mesma lei impõe penalidade no caso de transporte de mercadoria “sem documento fiscal, com documento fiscal fraudulento ou com via diversa da exigida para acompanhar o transporte”. No caso de se tratar de mercadoria pirateada:

       1. Se a operação for CIF, embora já tenha ocorrido a saída da mercadoria do estabelecimento do contribuinte (art. 4º, I), o fato gerador ainda não se completou, pois não houve a tradição da coisa. Como não houve mudança de titularidade da mercadoria, não ocorreu a sua circulação jurídica, circunstância necessária à caracterização do fato gerador do tributo. A apreensão e destruição da mercadoria pirateada, nessa hipótese, impedem que se complete o fato gerador e, portanto, impede o lançamento do tributo.

       2. Mas, se a operação for FOB (já houve a tradição da mercadoria e o transporte ocorre por conta do adquirente), o fato gerador ocorreu e o tributo é devido. A autoridade fiscal deve constituir o crédito tributário, independentemente de a mercadoria ser apreendida e destruída pelos agentes do Cecop. Caso não seja possível a identificação do real proprietário, o crédito tributário poderá ser constituído contra o transportador, como sujeito passivo por responsabilidade, nos termo do art. 9º, II, “a”.

       Raciocínio semelhante pode ser aplicado em relação às demais alíneas desse inciso.

       Vejamos agora o caso da infração prevista no art. 62 da mesma lei: “entregar, receber ou manter em estoque ou depósito, em local inscrito ou não no cadastro de contribuintes do imposto, mercadoria sem documento fiscal ou com documento fiscal fraudulento”. A entrega depende de flagrante: o fisco deve surpreender o ato de entregar a mercadoria.

       No caso de mercadoria em estoque, o fato gerador cujo ICMS pode ser exigido é a aquisição da mercadoria em estoque. Caso de não seja possível identificar o contribuinte (quem promoveu a operação antecedente de circulação das mercadorias), o crédito tributário deverá ser exigido do possuidor (o dono ou locatário do imóvel) das mercadorias “cuja posse mantiver para fins de comercialização ou industrialização”, na condição de responsável (sujeito passivo indireto) conforme art. 9º, IV, da Lei 10.297/1996.

       Nessa hipótese, por estar sendo exigido ICMS devido correspondente a fato gerador já consumado, é indiferente a posterior apreensão ou destruição das mercadorias pirateadas.

 

7. Conclusões:

A guisa de conclusão destaca-se:

       a) a atribuição primordial da Administração Tributária é fiscalizar e arrecadar os tributos legalmente instituídos para viabilizar a sustentabilidade do Estado e, por conseguinte, da realização do bem comum; independentemente da licitude ou não do comportamento do contribuinte a ser objeto da tributação; 

       b) a pirataria é conduta tipificada como crime de ação penal privada; para que o Estado tome a iniciativa de coibir-lhe, deve ficar caracterizado o interesse público, ou seja que o dano maior não seja do particular titular da propriedade imaterial, mas sim da coletividade (v.g. saúde ou segurança dos consumidores, situação em que a tutela jurisdicional será requerida pelo Ministério Público);

       c) o Estado somente poderá destituir o particular do seu direito de propriedade em três hipóteses, a saber: 1) pela expropriação (desapropriação) quando declarada a utilidade pública do bem expropriado, ou por necessidade pública ou ainda por relevante interesse social, porém sempre mediante justa e prévia indenização; 2) pelo confisco em razão de prática delituosa onde haja expressa previsão legal do perdimento do bem envolvido nesta prática; ou 3) no caso de o proprietário ter abandonado o bem, apreendido pelo Estado mediante o devido processo legal;

       d) o Fisco somente poderá reter a mercadoria quando isto for indispensável para a comprovação do ilícito tributário e apenas até a identificação do real proprietário, quando deverá ser lavrada notificação de lançamento constituindo o crédito tributário correspondente, seguindo-se a sua liberação; 

       e) o combate a pirataria de per se não é atribuição do Fisco, porém, se do liame fático envolvido na “prática pirata” também se encontre conduta que represente infração tributária, a atuação do fisco poderá subsidiar a identificação da “pirataria”, bem como a persecução penal dela decorrente.   

 

Getri, em Florianópolis, 24 de abril de 2013.

 

 

           Velocino Pacheco Filho                                     Lintney Nazareno da Veiga

           AFRE – mat. 184244-7                                          AFRE – mat. 191402-2

 

 

 

 

Amery Moisés Nadir Jr.

p/ Gerente de Tributação



[1] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol. 1, 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 136

[2] Idem, p. 143

[3] Idem, p. 144

[4] Ibidem

[5] Ibidem

[6] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 19ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 102

[7] GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 9

[8] Idem, p. 22

[9] PAULSEN, Leandro. Direito Tributário: Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e da Jurisprudência. 11ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado; ESMAFE, 2009, p. 925.

[10] BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 714

[11] MACHADO, Hugo de Brito. Comentários ao Código Tributário Nacional. Vol. II, São Paulo: Atlas, 2004, p. 390/391

[12] DERZI, Misabel, atualização de BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 716

[13] AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 261

[14] TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 1993, p. 6.

[15] BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola & PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 11ª ed. Brasília: UnB, 1998.

[16] BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 5ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1993, p. 184

[17] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. op. cit., p. 85

[18] COELHO, Sacha C. Navarro. Teoria e Prática das Multas Tributárias. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 59.

[19] COSTA JR., Paulo José da; DENARI, Zelmo. Infrações Tributárias e Delitos Fiscais. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 80

[20] COELHO, Sacha C. Navarro. Op. cit., p. 61.

[21] VIANA, Marco Aurélio da Silva. Comentários ao Novo Código Civil, volume XVI: dos direitos reais  (coord. por Sálvio de Figueiredo Teixeira). Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 18

[22] BOQUIMPANI, Eduardo. Excesso de Exação. RTFP 34: 81, São Paulo: Rev. Tribunais, 2000, p. 82.