ESTADO DE SANTA CATARINA

SECRETARIA DE ESTADO DA FAZENDA

DIRETORIA DE ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA

GERÊNCIA DE TRIBUTAÇÃO

 

 

NOTA TÉCNICA N° 004/2012

 

Da (im)possibilidade de instauração de procedimento de fiscalização fundamentado em denúncia anônima e o principio da moralidade administrativa.

 

 

1. Considerações iniciais:

                        Tem se tornado comum, por parte do Fisco como de organizações policiais, o estímulo à denúncia de fatos ilícitos ou criminosos, mesmo assegurando ao denunciante o anonimato, o que o tornaria a salvo de possíveis represálias.

                        A medida tem encontrado evidente apoio popular, refletindo a indignação com a impunidade dos infratores e culpados pela sonegação de tributos que deveriam estar financiando serviços públicos, em proveito da maioria da população.

                         Todavia, o emprego de tais métodos, por mais bem intencionados que sejam seus proponentes, deve cercar-se das cautelas necessárias para não lesar direitos fundamentais garantidos pela Constituição, tais como a privacidade, a honra, a imagem e a dignidade da pessoa humana.

                        A instauração de procedimento de procedimento fiscal, baseado em denúncia anônima, não deve ser conduzido de modo a arruinar a reputação do contribuinte, para, ao final, descobrir-se que era inocente.

                        O que depende de prova é a culpa, não a inocência.  

 

2. Os poderes de investigação do Fisco e seus limites:

                        O ordenamento jurídico brasileiro dotou o Fisco de amplos poderes de investigação, facultando à Administração Tributária “identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte” (CF, art. 145, § 1°).

                        O Código Tributário Nacional assegura ao Fisco o direito de “examinar mercadorias, livros, arquivos, documentos, papéis e efeitos comerciais ou fiscais de comerciantes, industriais ou produtores”, direito que não pode ser limitado ou excluído por quaisquer disposições legais (art. 195). Já o art. 197 minho obriga as pessoas nele enumeradas a prestar as “informações de que disponham com relação a bens, negócios ou atividades de terceiros”, exceto em relação aos fatos a que o informante estiver “obrigado a observar segredo em razão de cargo, ofício, função, ministério, atividade ou profissão” (parágrafo único). Entre outros, estão obrigados a prestar informações ao Fisco “os bancos, casas bancárias, Caixas Econômicas e demais instituições financeiras” (inciso II). Conforme Gilmar Ferreira Mendes , et Al. (Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 376)

                        “A Lei Complementar n° 105/2001 atribui aos agentes tributários, no exercício do seu poder de fiscalização, o poder de requisitar informações referentes a operações e serviços das instituições financeiras, independentemente de autorização judicial. A lei cerca a providência de cuidados formais, com vistas a minimizar os custos para o direito à privacidade do investigado e assegurar que esteja nítida a necessidade da medida”.

                        Os poderes de investigação do Fisco, conforme parágrafo único do art. 194, “aplica-se às pessoas naturais ou jurídicas, contribuintes ou não, inclusive às que gozem de imunidade tributária ou de isenção de caráter pessoal”.

                        A Lei Complementar 104/2001 acrescentou parágrafo único ao art. 116 do CTN dispondo que “a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária”. É a famosa norma antielisiva que tem gerado tanta polêmica entre os operadores do direito.

                        O art. 185-A, acrescentado pela Lei Complementar 118/2005, prevê que, “na hipótese de o devedor tributário, devidamente citado, não pagar nem apresentar bens a penhora no prazo legal e não forem encontrados bens penhoráveis, o juiz determinará a indisponibilidade de seus bens e direitos”.

                        Além disso, a Lei 8.397, de 6 de janeiro de 1992, institui a medida cautelar fiscal que torna indisponíveis os bens do requerido “até o limite da satisfação da obrigação tributária”. A cautelar fiscal pode ser requerida pela Fazenda Pública “no caso de atividade do contribuinte que dificulte ou impeça a satisfação do crédito tributário”, como no caso de alienação de bens ou pô-los em nome de terceiros, para frustrar o pagamento do tributo.           

                        Os poderes investigatórios do Fisco são amplos, mas não são ilimitados. O limite, no moderno Estado Democrático de Direito, é dado pelos direitos e garantias individuais. Assim, a denúncia às autoridades de ato ou fato ilícito, mesmo que anônima, pode (e deve) ser investigada pela Administração Tributária, porém desde que desta prática não resulte lesão a valores jurídicos albergados pela Constituição da República, como:

                        a) a dignidade da pessoa humana, como fundamento da República (art. 1°, III);

                        b) a garantia da intimidade, da honra e da imagem (art. 5°, X); e

                        c) a presunção de inocência até que seja provada a culpa (art. 5°, LVII).

 

3. A denúncia:

3.1. Conceito de denúncia:

                        Entende-se por denúncia o ato pelo qual alguém leva ao conhecimento da autoridade a ocorrência de fato contrário à lei e suscetível de punição. De Plácido e Silva, em sua conhecida obra “Vocabulário Jurídico” (15ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1998), discorre longamente sobre o conteúdo semântico do vocábulo, verbis:

                        “Derivado do verbo latino denuntiare (anunciar, declarar, avisar, citar), é vocábulo que possui aplicação no Direito, quer Civil, quer Penal ou Tributário com o significado genérico de declaração, que se faz em juízo, ou notícia, que ao mesmo se leva, de fato que deva ser comunicado.

                        Mas, propriamente, na técnica do Direito Penal ou do Direito Tributário, melhor se entende a declaração de um delito praticado por alguém, feita perante a autoridade a quem compete tomar a iniciativa de sua repressão.

                        A denúncia, consistindo numa representação que se faz a respeito do fato delituoso, mostra-se, assim, iniciativa de qualquer pessoa, a quem o fato tenha prejudicado, ou que a toma em defesa da sociedade, e com a intenção de provocar a punição do criminoso ou infrator.

                        E constará não somente da narrativa do fato delituoso bem como da indicação da pessoa que lhe tenha dado causa, quando possível a sua indicação.”

 

3.2. A denúncia anônima:

                        A denúncia é anônima quando seu autor é desconhecido. Por esse mesmo motivo não tem qualquer valor probatório. Isto por que, de ordinário, a denúncia anônima é motivada pelos piores sentimentos da humanidade: vingança, inveja, ódio, cobiça etc. O denunciante anônimo não quer se identificar ou por medo de represália ou porque a denúncia é inverídica. O que move o denunciante é o desejo de fazer o mal; de prejudicar o denunciado.

                        Eduardo Marcial Ferreira Jardim (Dicionário Jurídico Tributário, 3ª ed. São Paulo: Dialética, 2000, p. 59) entende que a denúncia deve ser formulada por escrito, “sendo obrigatória a qualificação do seu autor, bem como a descrição minuciosa dos fatos, de modo a determinar, com segurança, a infração e o infrator”. Tais providências, previstas em relação ao IPI, pela Lei n° 4.502/64, afastariam a possibilidade do anonimato do autor da denúncia. O autor sustenta que tais requisitos deveriam ser generalizados para todos os tributos, desenvolvendo o seguinte argumento:

                        “A nosso ver, esses requisitos deveriam ser aplicáveis à administração de qualquer tributo, porquanto oferecem informações claras, ao menos em tese, ensejando à Fazenda Pública aquilatar se o fato objeto da denúncia merece ser investigado ou não. Com isso, evita-se que a Fazenda Pública desloque auditores para uma tarefa eventualmente inócua, prestando-se, indiretamente, a satisfazer represálias pessoais estabelecidas entre particulares, o que seria um absurdo”.

                        Do ponto de vista da moralidade pública, a ação fiscal baseada em denúncia anônima ou mesmo o seu incentivo implicaria o patrocínio pela Administração Tributária da instauração de um estado de delação, característico dos regimes autoritários e contrário à concepção do Estado Democrático de Direito.

                        Com efeito, a Lei Maior, ao tratar dos direitos e garantias individuais e coletivos, assegura a livre manifestação do pensamento (art. 5°, IV), porém vedado o anonimato. O inciso V do mesmo artigo, por sua vez, garante “o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”. Como pode ser dada resposta ou pedido de indenização, quando o agravo parte de quem se oculta no anonimato?

                        Qual o valor probatório da denúncia? Equivale ao da prova testemunhal em que um terceiro relata às autoridades os fatos que são de seu conhecimento.

                        Contudo, o anonimato é incompatível com o art. 339 do Código Penal, na redação dada pela Lei n° 10.028, de 19 de outubro de 2000, que tipifica como crime, sujeito a pena privativa de liberdade, quem “der causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente”. Mas, para tanto é necessário que o denunciante seja identificado, sob pena da Administração Tributária tornar-se cúmplice do crime.

                        Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins (Comentários à Constituição do Brasil, 2° vol. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 43) pintam em cores vivas as conseqüências nefastas do anonimato:

                        “Ora, é fácil imaginar que exercido irresponsavelmente, este direito tornar-se-ia uma fonte de tormentos aos indivíduos na sociedade. A todo instante poderiam ser objeto de informações inverídicas, de expressões valorativas, de conteúdo negativo, tudo isto feito sem qualquer benefício social, mas com a inevitável conseqüência de causar danos morais e patrimoniais às pessoas referidas. A Constituição cuida neste mesmo parágrafo sob comento de estabelecer um sistema de responsabilidade bastante desenvolvido e eficaz, senão vejamos: ‘Proíbe-se o anonimato’. Com efeito esta é a forma mais torpe e vil de emitir-se o pensamento”.

                        “A pessoa que o exprime não o assume. Isto revela terrível vício moral consistente na falta de coragem. Mas este fenômeno é ainda mais grave. Estimula opiniões fúteis, as meras sacadilhas, sem que o colhido por estas maldades tenha possibilidade de insurgir-se contra o seu autor, inclusive demonstrando a baixeza moral e a falta de autoridade de quem emitiu estes atos”.

                        “Foi feliz portanto o Texto Constitucional ao coibir a expressão do pensamento anônimo”.

                        “Sem dúvida, a identificação do responsável pelos juízos e valores emitidos é condição indispensável para que se desenvolvam os atos posteriores tendentes à sua responsabilização.”

                        Todas essas considerações têm igualmente aplicação à denúncia anônima. Por decorrência, o constrangimento proporcionado por uma ação fiscal desencadeada com base em denúncia anônima, além de potencialmente ferir garantias constitucionais, pode caracterizar ainda o crime de excesso de exação, previsto no art. 316, § 1° do Código Penal.

 

4. Denúncia anônima e moralidade administrativa:

                        O art. 37 da Constituição Federal enumera como princípios que a Administração Pública, direta e indireta, de qualquer dos Poderes e de qualquer esfera de governo, devem observar. São eles o princípio da legalidade, o princípio da impessoalidade, o princípio da moralidade, o princípio da publicidade e o princípio da eficiência.

                        Assim, apesar de todas as distinções traçadas pela doutrina para separar a moral e o direito, a moral restou positivada pelo direito, ao menos no que se refere à Administração Pública. Doravante não basta ao ato administrativo ser legal; ele também precisa ser moral. O ato administrativo, mesmo legal, pode ser declarado nulo por ser imoral. Apropriado se revela o escólio de Gilmar Ferreira Mendes et al. (Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 787):

                        “... pode-se dizer que a reverência que o direito positivo presta ao princípio da moralidade decorre da necessidade de pôr em destaque que, em determinados setores da vida social, não basta que o agir seja juridicamente correto; deve, antes, ser também eticamente  inatacável. Sendo o direito o mínimo ético indispensável à convivência humana, a obediência ao princípio da moralidade, em relação a determinados atos, significa que eles só serão considerados válidos se forem duplamente conformes à eticidade, ou seja, se forem adequados não apenas às exigências jurídicas, mas também às de natureza moral. A essa luz, portanto, o princípio da moralidade densifica o conteúdo dos atos jurídicos, e em grau tão elevado que a sua inobservância pode configurar improbidade administrativa e acarretar-lhe a suspensão dos direito políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, sem prejuízo da ação penal cabível, se a sua conduta configurar, também, a prática de ato tipificado como crime, consoante o disposto no § 4° do art. 37 da Constituição”.

                        A própria Constituição, art. 5°, LXXIII, prevê ação popular contra ato lesivo à moralidade administrativa.

 

4.1. Norma jurídica e norma moral:

                        Mas, afinal, no que reside a distinção entre direito e moral; entre norma jurídica e norma moral?

                        Em primeiro lugar a adesão à regra moral é voluntária: a cumprimos porque acreditamos nela. Já o direito é essencialmente coercitivo: a norma jurídica é dotada de sanção que garante o seu cumprimento, independentemente de concordância ou aceitação do seu destinatário. A norma jurídica é dotada de cumprimento forçado.

                        Enquanto o descumprimento da norma moral acarreta apenas uma censura social, o descumprimento da norma jurídica acarreta sanção e o seu cumprimento forçado. Isto porque, a adesão ao preceito moral é uma questão de foro íntimo (livre arbítrio), essencialmente subjetivo; mas a norma jurídica não se submete ao livre arbítrio, sendo imposta aos seus destinatários (imperatividade do direito). Hans Kelsen (Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 68) distingue moral e direito nos seguintes termos:

                        “Uma distinção entre o Direito e a Moral não pode encontrar-se naquilo que as duas ordens sociais prescrevem ou proíbem, mas no como elas prescrevem ou proíbem uma determinada conduta humana. O Direito só pode ser distinguido essencialmente da Moral quando – como já mostramos – se concebe como uma ordem de coação, isto é, como uma ordem normativa que procura obter uma determinada conduta humana ligando à conduta oposta um ato de coerção socialmente organizado, enquanto a Moral é uma ordem social que não estatui quaisquer sanções desse tipo, visto que as suas sanções apenas consistem na aprovação da conduta conforme às normas e na desaprovação da conduta contrária às normas, nela não entrando sequer em consideração, portanto, o emprego da força física”.

                        Quem for prejudicado pelo descumprimento de norma jurídica pode invocar o poder jurisdicional do Estado para buscar reparação ao dano que sofreu, o que não acontece com a norma moral.

                        A moral, por ser de foro íntimo, compreende apenas deveres (para consigo mesmo, para com o próximo, para com Deus), mas o direito compreende tanto deveres como direitos.

 

4.2 Conteúdo mínimo do princípio da moralidade administrativa:

                        A diferença entre norma jurídica e norma moral, como visto acima, está bem caracterizada. Porém o art. 37 da Constituição acaba por positivar a moral, de modo que a regra moral passa a constituir o conteúdo de regra de direito positivo que, como tal, passa a ser dotada de sanção e aplicada pelas autoridades judiciárias. O problema agora consiste em determinar qual o conteúdo da moralidade administrativa. Qual o critério para dizer que determinada conduta é moral ou imoral e que o ato administrativo é nulo ou não.

                        A moral é subjetiva e depende de adesão a suas regras. As condutas aceitas como morais variam de um para outro indivíduo. No campo da moralidade administrativa (que se aplica à relação entre Administração e administrados), há um consenso entre os doutrinadores de que a lealdade e a boa-fé constituem o seu conteúdo mínimo. Nesse sentido, leciona Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de Direito Administrativo. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 69):

                        “Segundo os cânones da lealdade e da boa-fé a Administração haverá de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo-lhe interdito qualquer comportamento astucioso, eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos por parte dos cidadãos”.

                        No mesmo sentido, se posiciona Diva Malerbi (O Princípio da Moralidade no Direito Tributário. Coordenador Ives Gandra da Silva Martins. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais: Centro de Extensão Universitária, 1998, p. 58):

                        “Enfim, estão compreendidos no âmbito do princípio da moralidade, os da lealdade e boa-fé. A moralidade administrativa é princípio desdobrado da confiança que o povo depositou no poder e na legitimidade da atividade administrativa em relação à gestão da coisa pública. Em conseqüência, a moralidade no contexto dos princípios erigidos à administração, guarda primazia, pois toda atuação estatal deve partir e buscar a dimensão ética. No Estado Democrático de Direito, a legalidade legítima da conduta administrativa é, simplesmente, legalidade moral. A moralidade do direito é, assim, o aperfeiçoamento das atividades da administração pública”.

                        Antônio da Silva Cabral (Processo Administrativo Fiscal. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 58), por sua vez, não discrepa desse entendimento:

                        “Procura-se, atualmente, tornar realidade o princípio da lealdade, em virtude do qual entre o fisco e o contribuinte deve existir uma relação de mútua confiança e colaboração, tudo com base na mais estrita lealdade. De um lado, o fisco deve facilitar ao contribuinte o conhecimento da lei e deve orientá-lo no cumprimento de seus deveres fiscais, e não se portar apenas como o fiscal da lei que espreita o mínimo deslize do particular para puni-lo”.

 

4.3. A moralidade administrativa e a dimensão ética do Estado Democrático de Direito:

                        Mas, não basta definir o conteúdo mínimo do princípio da moralidade administrativa. É preciso avançar. A plenitude do princípio somente poderá ser revelada mediante o resgate da dimensão ética do Estado Democrático de Direito. Nesse conceito abrigam-se, de um lado, a democracia entendida como único fundamento legítimo do governo, e, de outro, o Estado de direito, entendido como o Estado obrigado a observar as leis que ele próprio edita. Conforme Ricardo Lobo Torres (Sistemas Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 63):

                        “Coincidindo com o Estado Liberal, por oposição ao Estado Absolutista, o Estado de Direito foi entendido por Kant como a união dos homens sob o império das leis do Direito. Caracteriza-se, sobretudo, por ser o reino da legalidade com o objetivo precípuo de garantir os direitos fundamentais, especialmente a liberdade, na sua mais ampla acepção, e a igualdade, em seu sentido formal”.

                        Paulo Bonavides (Curso de Direito Constitucional. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 398) distingue duas acepções de Estado de Direito que se sucedem no tempo histórico: a primeira “se vincula doutrinariamente ao princípio da legalidade” e a segunda “deslocou para o respeito dos direitos fundamentais o centro de gravidade da ordem jurídica”. Conforme leciona esse autor:

                        “A revolução constitucional que deu origem ao segundo Estado de Direito principiou a partir do momento em que as declarações de direitos, ao invés de “declarações político-filosóficas”, se tornaram “atos de legislação vinculantes” ....”

                        “Fica assim erigido em barreira ao arbítrio, em freio à liberdade de que, à primeira vista, se poderia supor investido o titular da função legislativa para estabelecer e concretizar fins políticos” (p. 400).

                        Com razão conclui Fábio Konder Comparato (Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 622) que os direitos humanos “em sua totalidade – não só os direitos civis e políticos, mas também os econômicos, sociais e culturais; não apenas os direitos dos povos, mas ainda os de toda a humanidade, compreendida hoje como novo sujeito de direitos no plano mundial – representa a cristalização do supremo princípio da dignidade humana”.

                        Nesse ponto, cabe trazer à discussão a reflexão de Emmanuel Levinas (Entre nós: ensaios sobre alteridade. 5ª ed. Petrópolis: Vozes, 2010, p. 236):

                        “A descoberta de direitos que, sob o título de direitos do homem, se relacionam à própria condição de ser homem, independentemente de qualidades como nível social, força física, intelectual e moral, virtudes e talentos, pelos quais os homens diferem entre si, e a elevação destes direitos ao nível de princípios fundamentais da legislação e da ordem social, certamente marcam um momento essencial da consciência ocidental”.

                        E o Senhor disse a Cain: Onde está teu irmão? Abel? E ele respondeu: Não sei. Porventura sou eu o guarda de meu irmão”? [Gênesis, 4; 9]

                        Da perspectiva de uma ética da Alteridade – uma ética não só voltada para o outro, mas construída a partir do outro –, todos os homens são guarda de todos os homens, no sentido de serem responsáveis por todos os homens. Acrescenta o filósofo (id. p. 130):

                        “O encontro com Outrem é imediatamente minha responsabilidade por ele. A responsabilidade pelo próximo é, sem dúvida, o nome grave do que se chama amor do próximo, amor sem Eros, amor em que o momento ético domina o momento passional, amor sem concupiscência”.

                        A construção de uma sociedade livre, justa e solidária, proclamada como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (CF, art. 3°, I) somente se torna viável mediante a adoção de políticas fundadas na ética da alteridade. A responsabilidade pelo próximo de que fala Levinas é, também e principalmente, a responsabilidade pelo terceiro, por aquele cujo rosto desconheço, mas pelo qual sou responsável.

                        “A falta social é cometida sem que eu o saiba, em relação a uma multiplicidade de terceiros que eu não olharei jamais de frente, que eu não tornarei a encontrar na face de Deus e por quem Deus não pode responder” (id. p. 43).

                        A construção de um conceito de moralidade administrativa adequado ao projeto de um Estado capaz de realizar a sociedade solidária – ideal contido na Carta – passa pela adoção da ética da alteridade como princípio norteador. No comentário de Ozanan Vicente Carrara (Levinas: do sujeito ético ao sujeito político: elementos para pensar a política outramente. Aparecida: Idéias & Letras, 2010, p. 166):

                        “Um Estado ético seria o único capaz de apontar para um além, para uma utopia do humano. O Estado ético deixaria de se ver como fim para se descobrir como meio capaz de transcender em direção à responsabilidade pelo outro”.

                        Em uma abordagem do conceito de moralidade administrativa que se aproxima da temática proposta por Levinas, Marco Aurélio Greco (Notas sobre o Principio da Moralidade. Direito Tributário: homenagem a Alcides Jorge Costa. Coordenação de Luis Eduardo Schoiueri. Vol. I, São Paulo: Quartier Latin, 2003, pgs. 384-5) comenta que “conduta imoral não é a que ‘desobedece’ um padrão prévio, mas sim a que causa ‘injustiça’ a alguém. Moralidade, pois, é conceito que só pode ser aferido em relação ao Outro que é destinatário da conduta”. A ética da alteridade, pois, fornece um critério para o relacionamento entre Administração e administrado ou entre Fisco e contribuinte. Conclui o autor citado que:

                        “O princípio da moralidade, portanto, não olha para o interior do Ser Humano, mas sim para o seu exterior, onde se encontram os destinatários da sua ação, ou seja, aqueles que poderão sofrer as injustiças da sua conduta”.

                        “Exigir um comportamento moral, portanto, é exigir que a conduta se volte para o destinatário e suas circunstâncias e que não inviabilize o justo equilíbrio buscado pela própria norma”.

                        O conteúdo axiológico do princípio da moralidade administrativa encontramos no próprio texto constitucional. A Carta, em seus vários dispositivos, abriga valores e sobrevalores, para cuja realização devem estar orientadas as políticas pública e a própria atuação da Administração, no dia dia.

                        Assim, a dignidade da pessoa humana, como um dos fundamentos do Estado brasileiro, encontramos no art. 1°, III. O mesmo artigo diz que o Brasil é um Estado Democrático de Direito e o parágrafo único do mesmo artigo declara que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente”. A democracia, portanto, mais que forma de governo, é, em si mesma, um valor. Conforme Jürgen Habermas (Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. II, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 276): “O Estado democrático de direito transforma-se em um projeto, resultado e, ao mesmo tempo, mola de uma racionalização do mundo da vida, o qual ultrapassa as fronteiras do político”.

                                    Isto por que a democracia, enquanto processo comunicativo, tem como pressuposto que todos tem o direito de serem ouvidos. Acrescenta Leonardo Avritzer (A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana e teoria democrática. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: UFMG, 1996, p. 122) que: “A validade da democracia está inerentemente ligada ao processo de argumentação através do qual um indivíduo reconhece ao outro enquanto igual na utilização da linguagem”.

                        Por conseguinte, “o primeiro pilar de uma concepção moral de democracia consiste na idéia da política enquanto autodeterminação de uma comunidade de iguais capazes de discutir as regras de sua organização” (id. p. 154).

                        “A identidade da nação de cidadãos não reside em características étnico-culturais comuns, porém na prática de pessoas que exercitam ativamente seus direitos democráticos de participação e de comunicação” ( Habermas, id. p. 283).

                        Fábio K. Comparato (op. cit. p. 665) define o regime democrático como “aquele em que a soberania pertence ao povo (...) para a realização do bem comum de todos (...), submetendo-se sempre o exercício desse poder soberano às normas jurídicas que consubstanciam os grandes princípios éticos (...)”. O princípio democrático (governo do povo) deve ser equilibrado pelo Estado de direito (governo das leis), na medida que dão juridicidade aos valores morais reconhecidos pelo ordenamento. A vontade da maioria e o governo das assembléias podem igualmente ser tirânicos se o seu exercício não for contrabalançado pelos princípios éticos acolhidos pelo ordenamento jurídico.

                        Assim, podemos compreender o Estado de direito como “a organização política em que a vontade dos titulares do poder, tanto do soberano, quanto dos governantes, não pode nunca sobrepor-se às normas fundamentais do Estado” (id. p. 664).

                        O resgate da dimensão ética do Estado passa pela compreensão do bem comum, enquanto “princípio edificador da sociedade humana e fim para o qual ela deve se orientar do ponto de vista natural e tem poral” (Norberto Bobbio et al. Dicionário de Política. 11ª ed. Brasília: UnB, 1998). O Catecismo da Igreja Católica (São Paulo: Loyola, 2000, p. 507) conceitua bem comum como “o conjunto daquelas condições da vida social que permitem aos grupos e a cada um de seus membros atingirem de maneira mais completa e desembaraçadamente a própria perfeição”. Distingue três elementos essenciais: (i) o respeito pela pessoa; (ii) o bem estar social e o desenvolvimento do próprio grupo; e (iii) a paz e segurança. A realização do bem comum é a tarefa precípua do Estado. “Em nome do bem comum, os poderes públicos são obrigados a respeitar os direitos fundamentais e inalienáveis da pessoa humana”. O bem comum inclui o acesso ao que é necessário para levar uma vida verdadeiramente humana: alimento, vestuário, saúde, trabalho, educação e cultura, informação conveniente, direito de fundar um lar etc.

                        “Se cada comunidade humana possui um bem comum que lhe permite reconhecer-se como tal, é na comunidade política que encontramos sua realização mais completa. Cabe ao Estado defender e promover o bem comum da sociedade civil, dos cidadãos e dos organismos intermediários”.

                       

4.4. Moralidade administrativa como fundamento da relação Fisco-contribuinte:

                        As relações entre o contribuinte e a Administração Tributária devem estar baseadas na lealdade e na boa-fé, sem manobras astuciosas ou eivadas de malicia (princípio da moralidade administrativa no seu conteúdo mínimo). O contribuinte é, antes de tudo, um cidadão brasileiro, convocado para contribuir para o financiamento do setor público. Como contrapartida do dever de contribuir, ele tem o direito de ser tributado de acordo com a sua capacidade econômica e suas características pessoais (CF, art. 145, § 1°); garantido o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, quando não concordar com o tributo que lhe for exigido.

                        Conforme leciona Celso Ribeiro Bastos (O Princípio da Moralidade no Direito Tributário. Coordenador Ives Gandra da Silva Martins. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais: Centro de Extensão Universitária, 1998, p. 84):

                        “Existe, por fim, outra categoria de ato administrativo contrário à moral administrativa. Nesta, o ato não contraria a lei e também não é conseqüência do desvio de poder. Ofende a moralidade na medida em que, apesar da atuação ser prevista em lei, prejudicar os particulares. A atuação da Administração, aqui, não está acobertando atos violadores da ideologia legal; ocorre simplesmente o uso da norma administrativa em prejuízo do particular. O benefício trazido a todos é menor do que o ônus suportado pelo receptor do ato”.

                        Pela ótica da ética da alteridade, o contribuinte, para o servidor, é o outro pelo qual ele é responsável. Na situação comentada por Celso Ribeiro Bastos, a imoralidade do ato administrativo consiste exatamente no prejuízo que venha a causar, sem que tal encontre justificativa no benefício social. Essa é uma situação em que o princípio da moralidade administrativa se aproxima do princípio da proporcionalidade, sem que com este se confunda. Prossegue o mesmo autor:

                        “Por serem os agentes fiscais autoridades públicas, devem obediência, em seu agir, às regras do ordenamento jurídico, e também, da mesma forma, ao princípio constitucional da moralidade administrativa. Aliás, tal princípio diz respeito aos próprios meios de ação escolhidos pela Administração através de seus agentes” (ibidem).

                        No magistério de Tércio Sampaio Ferraz Jr. (Direito Constitucional: liberdade de fumar, privacidade, estado, direitos humanos e outros temas. Barueri SP: Manole, 2007, p. 388), temos que:

                        “A obediência à moralidade é princípio constitucional (CF, art. 37). Não se trata de regra difusa ou de regra sobre regras, mas de regra imanente aos atos administrativos. Ou seja, configura o ato, não a norma que o autoriza. Nesse sentido, não se confunda legalidade com moralidade. Legalidade é requisito da norma, não do ato que a emana. Assim, uma norma pode ser legal, sem ser moral o ato que a estabelece. Legalidade é requisito material da norma e formal da competência. Moralidade diz respeito ao ato (que, assim, não se reduz à legalidade da competência e do mérito). Destarte, desvirtuar os motivos do ato para justificar (motivar) as suas conseqüências fere a moralidade”.

                        O princípio da moralidade administrativa, visto da perspectiva da ética da alteridade, tem o potencial de modificar radicalmente as relações entre Fisco e contribuinte, não só, no seu conteúdo mínimo de lealdade e boa-fé, mas também e principalmente na construção de uma sociedade solidária e na consecução do bem comum. Nesse mesmo sentido, o escólio de Marco Aurélio Greco (op. cit.):

                        “Neste contexto, legalidade e moralidade se compõe, na medida em que, dentro da legalidade e sem infringi-la, é possível ter uma conduta moral no sentido de reconhecimento do significado e relevância do destinatário do ato, como verdadeiro integrante de um conjunto abrangente. Isto é possível em duplo sentido, seja dimensionando (dentro da legalidade) a ação e não cometendo excessos, ainda que legalmente autorizados; seja encontrando na interpretação da lei (sem deturpá-la) o sentido que melhor atenda a um parâmetro de justiça, vista sob a perspectiva do destinatário”.

                        “Esta visão quebra a relação de dominação do sujeito sobre o objeto e instaura uma relação de convivência entre interlocutores”.

 

5. Valor probatório da denúncia:

5.1. A prova na constituição do crédito tributário:

                        O lançamento, como ato administrativo que constitui o crédito tributário, compreende a edição de norma singular (dirigida a determinado sujeito passivo) e concreta (relativa à ocorrência de determinado fato jurígeno), em cujo antecedente se afirma a ocorrência do fato e sua correspondência à descrição do fato hipotético contido no antecedente da norma geral e abstrata extraída pelo intérprete/aplicador do texto do direito positivo. O conseqüente, por sua vez, estabelece uma relação jurídica entre o sujeito ativo (titular do direito subjetivo de exigir o tributo) e o sujeito passivo (pessoa obrigada ao seu recolhimento) que tem por objeto a satisfação da obrigação tributária (o pagamento do tributo).

                        O ato pelo qual a autoridade administrativa afirma a ocorrência do fato jurígeno e que este corresponde ao fato hipotético referido pela norma jurídica geral e abstrata introduz esse fato no mundo jurídico: deixa de ser mero evento ou fato-no-mundo para se tornar fato jurídico e, desse modo, produzir efeitos jurídicos (como o de tornar o tributo exigível). A introdução do evento no mundo jurídico como fato jurídico constitui a prova que, nas palavras de Maria Rita Ferragut (Presunções no Direito Tributário. São Paulo: Dialética, 2001, p. 46), é “a proposição descritiva individual e concreta de enunciação do evento que se quer provar”.

                        Conforme magistério de Francesco Carnelutti (Teoria Geral do Direito. São Paulo: LEJUS, 1999, p. 521), “As provas são assim um equivalente sensível do fato para uma avaliação, no sentido de que proporcionam ao avaliador uma percepção mediante a qual lhe é possível adquirir o conhecimento desse fato”.

                        Entretanto é preciso advertir que a prova não é a realidade mesma, mas a realidade percebida pela ótica do direito, conforme as categorias do próprio direito. Assim, a prova, segundo Ferragut, é “a articulação linguística do significado da realidade (e não a própria realidade, inatingível)”. Pois, é preciso distinguir o que é, independentemente de ser conhecido pelo homem (ôntico), do que é como conhecido pelo homem (ontológico) e do que é como conhecido pelo direito (prova). É ainda Ferragut que conceitua o meio de prova como “o enunciado passível de ser produzido pelas partes, que tem por conteúdo a ocorrência ou inocorrência de um determinado acontecimento”.

                        Cabe à autoridade administrativa produzir a prova, ao construir o antecedente da norma individual e concreta (lançamento tributário) que instaura a relação jurídica tributária e, assim, constitui o crédito tributário como direito subjetivo da Fazenda Pública de exigir o pagamento do tributo. “A produção da prova de um fato torna-se ônus para a parte que tem interesse na sua afirmação” (Carnelutti, op. cit. p. 541).

 

5.2. A denúncia como prova testemunhal:

                        A denúncia enquanto notícia de fato delituoso levado ao conhecimento da autoridade tem o valor da prova testemunhal. No processo administrativo é pouco utilizada como elemento probatório, em contraste com a prova documental. Geralmente, quando trazida à colação, é reduzida à termo pela autoridade fiscal e não tem, em hipótese alguma, valor de prova plena, devendo ser cotejada com outros elementos probatórios.

                        Sobre o testemunho, preleciona a autoridade inconteste de Pontes de Miranda (Comentários ao Código de Processo Civil, tomo IV, arts. 282-443, Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 390):

                        “As testemunhas são pessoas que aparecem no processo, porém não na relação jurídica processual; são fatos na existentia fluens dessa, que é a instância. Daí serem inconfundíveis com os sujeitos processuais, inclusive como o mais leve interveniente adesivo, que não chega a ser parte. Falta-lhe o pressuposto de qualquer interesse na causa. São chamadas para expor em juízo o que conhecem de certos fatos que têm capital importância ou alguma importância para a causa. Expondo-os, enunciam o que se passou, tal como os sentidos, incluído o muscular, lhes revelaram, e tal como lhes ficou na memória: representações e ilações lógicas, nas quais tem de entrar o coeficiente psicológico do depoente testemunhal. De regra, o que delas se espera é apenas a descrição, a narração, tal como o faz o homem comum. Se intervém o elemento do ofício, da arte, da técnica, da ciência da testemunha, – ou ocorre certa valorização dela, ou se mescla à sua figura a do perito, sem que essa se exteriorize no campo processual.”

                        Naturalmente, o anonimato da testemunha invalida o seu depoimento como prova. Assim é no processo penal, com o qual, sob certos aspectos, guarda maior semelhança o processo tributário. Nesse sentido, o magistério de Tourinho Filho (Código de Processo Penal Comentado, vol. 1, 3ª ed. São Paulo, Saraiva, 1998, p. 404):

                        “Uma vez regularmente intimada, tem a testemunha o dever de comparecer perante a autoridade para depor, e, nesse ato processual, distinguem-se quatro momentos: a) a testemunha será perguntada sobre seu nome, naturalidade, estado, filiação, ou simplesmente exibe seu documento de identidade que não contenha rasura; b) será indagada sobre possível vinculação entre ela e as partes materiais; c) se for o caso, presta o compromisso; e, finalmente, d) o objeto concreto do seu depoimento”.

                        “Por primeiro, procura-se constatar se a pessoa que comparece perante a autoridade para depor é a mesma arrolada pelas partes.”

                        A identificação da testemunha, pois, é procedimento fundamental para a validade probatória do seu depoimento. Deve-se certificar que o depoente é o mesmo que foi originalmente arrolado. Assim, como admitir depoimento anônimo? Como admiti-lo quando mesmo as cautelas de que se cerca a lei adjetiva são insuficientes para garantir-lhe a autenticidade? Sobre o valor probatório do testemunho comenta o mesmo autor por último citado (op. cit. p. 406):

                        “Qual o valor da prova testemunhal? Sabemos não existir nenhuma prova com valor probatório absoluto, principalmente em se tratando da testemunhal. A testemunha às vezes mente por ruindade, por malignidade, por perversidade, ou, então, para lograr alguma vantagem. Pode pensar que está sendo sincera, quando, de fato, seu depoimento não é verdadeiro. Há várias circunstâncias que podem conduzi-las a essa situação. Explica-se em medicina legal que os fatos são apreendidos pelos sentidos que geram os estímulos, e estes são levados imediatamente aos centros cerebrais formando as sensações. Assim quando alguém faz um disparo, o sentido da audição o percebe e gera o estímulo; este é levado ao cérebro e lá se registra a sensação. Se a pessoa nunca ouviu um tiro, não pode saber do que se trata. Mas se já o ouviu, a sensação anterior, armazenada no cérebro, aliada à nova sensação, forma a percepção e, já agora, ela identifica o barulho produzido pelo disparo. A ciência já demonstrou que essas percepções podem ser alteradas por circunstâncias e fatores  vários. A maior ou menor duração dos estímulos, ou o maior ou menor grau de iluminação, o silêncio, a falta de atenção, a imaginação, a emoção, as ilusões, a perturbação da memória, a falta de interesse, a paixão, as doenças mentais, a histeria, a epilepsia, o tempo, dentre outras causas, internas ou externas, podem levar a testemunha, ainda que queira dizer a verdade, a desvirtuar os fatos. Donde se concluir que a prova testemunhal, como qualquer outro meio de prova, é de valor falível e precário. Há que notar ainda o fator memória; é claro que, uma vez apreendidos, os fatos nela são guardados. Há pessoas com memória privilegiada, outras, não, e, finalmente, algumas não têm interesse em guardar determinados fatos”.

                        “Quando a testemunha comparece perante a autoridade para reproduzir os fatos apreendidos pelos seus sentidos podem surgir, inconscientemente, deformações da verdade, quase sempre ditadas pela falta de atenção, desinteresse ou outro motivo qualquer. Podem ocorrer distorções provocadas por distúrbios psicossensoriais, confusão, falta de memorização e outros fenômenos. No afã de pretender esclarecer o fato a que assistiu, a testemunha, normalmente, busca na memória a lembrança do acontecimento e, às vezes, esbarra num obstáculo: trata-se de detalhe que pode ser muito importante, e à míngua de uma perfeita exatidão, procura preencher a lacuna com dados que lhe foram transmitidos por terceiros e, mesmo inconscientemente pela própria imaginação.”

                        Todo esse tortuoso processo psicológico, descrito por Tourinho Filho, refere-se ao depoimento testemunhal, cujo depoente está perfeitamente identificado e que prestou compromisso perante o magistrado. O que não esperar do depoente que permanece no anonimato, a salvo de qualquer responsabilidade por suas declarações? O que não fará a mulher traída ou o empregado demitido por justa causa ou o concorrente comercial se puder, mantendo-se anônimo, denunciar os negócios do contribuinte perante a Administração Tributária?

 

5.3. A (in)validade probatória da denúncia anônima:

                        A denúncia, quando o denunciante está devidamente identificado nos autos, tem valor de prova testemunhal. Porém, a denúncia anônima é imprestável como prova.

                        Com efeito, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Habeas Corpus 104.005, relator Min. Jorge Mussi (DJe 05/12/2011), decidiu que:

                        “1. Esta Corte Superior de Justiça, com supedâneo em entendimento adotado por maioria pelo Plenário do Pretório Excelso nos autos do Inquérito n. 1957/PR, tem entendido que a notícia anônima sobre eventual prática criminosa, por si só, não é idônea para a instauração de inquérito policial ou deflagração da ação penal, prestando-se, contudo, a embasar procedimentos investigatórios preliminares em busca de indícios que corroborem as informações da fonte anônima, os quais tornam legítima a persecução criminal estatal”.
                        No direito penal, não se admite, portanto, a instauração de inquérito policial com base somente em denúncia anônima. Apenas com a pesquisa de outros indícios que confirmem os fatos denunciados é que o inquérito pode ser instaurado. Do mesmo relator é o AgRg no AgRg 1.346.501 MS (DJe 10/08/2011) que admite a denúncia anônima apenas se “precedida de investigação preliminar e respeitados os direitos e garantias fundamentais, pode subsidiar a instauração da persecução penal”. O mesmo se aplica à instauração de procedimento fiscal. Os valores éticos acolhidos pela Constituição, como o da dignidade da pessoa humana e da proteção da honra, da imagem etc. não podem ser enxovalhados por uma ação policial ou fiscal imprudentemente desencadeada com base em denúncia anônima. 
                        A mesma Turma, considerando a vedação ao anonimato contida pela Constituição da República, decidiu no julgamento do HC 190.334 SP, em que foi relator o Min. Napoleão Nunes Maia Filho (DJe 09/06/2011):

                        “1. O sistema jurídico do País, composto de múltiplos princípios e inúmeras regras, exegeticamente harmonizados na Jurisprudência dos Tribunais e interpretados nas lições da Doutrina Jurídica, não admite que se instaure a persecução penal, na sua fase inquisitorial ou na sua fase processual, a partir de delações anônimas, ex vi do art. 5o., IV da Carta Magna”.

                        [...]

                        “4. É indispensável, assim, nos termos da norma constitucional e da norma legal que a regulamentou, a identificação clara e precisa dos indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal, e a demonstração de que somente por meio dessa medida extrema se poderá apurar o ilícito penal sob investigação; dessa forma, a sistemática do nosso ordenamento jurídico constitucional não permite a movimentação de aparato investigatório oficial, seja ele qual for, sem um mínimo de prova, não sendo mesmo razoável que aqueles indícios de autoria possam ser recolhidos a partir somente de uma denúncia apoiada no anonimato do denunciante, sem o apoio de outros elementos probatórios mais densos, robustos e, principalmente, confiáveis”.

                        Não discrepa o entendimento da Sexta Turma, no julgamento do HC 137.349 SP, em que foi relatora a Ministra Maria Thereza de Assis Moura (DJe 30/05/2011):

                        “A denúncia anônima, como bem definida pelo pensamento desta Corte, pode originar procedimentos de apuração de crime, desde que empreendida investigações preliminares e respeitados os limites impostos pelos direitos fundamentais do cidadão, o que leva a considerar imprópria a realização de medidas coercitivas absolutamente genéricas e invasivas à intimidade tendo por fundamento somente este elemento de indicação da prática delituosa”.
                        “A exigência de fundamentação das decisões judiciais, contida no art. 93, IX, da CR, não se compadece com justificação transversa, utilizada apenas como forma de tangenciar a verdade real e confundir a defesa dos investigados, mesmo que, ao depois, supunha-se estar imbuída dos melhores sentimentos de proteção social”.
                        Da mesma forma que sucede no inquérito policial, a denúncia anônima não é idônea para fundamentar a instauração de medida de fiscalização. A informação trazida pelo denunciante deve, em investigação preliminar, conduzida de forma a preservar os direitos e garantias fundamentais, ser confirmada por outros indícios. 
                        Não se deve esquecer que o contribuinte é um cidadão que contribui com o seu trabalho e esforço para a prosperidade e riqueza da coletividade e, como tal, beneficia-se da presunção de inocência até que seja provado o contrário.
                        Por esse motivo, o aparato fiscalizador do Estado não deve ser deflagrado sem um mínimo de elementos probatórios, bem construídos e confiáveis, não podendo apoiar-se apenas em denúncia em que o denunciante permanece anônimo.

 

6. A denúncia anônima na investigação do ilícito tributário:

                        Sobremodo alarmante, pelas sérias implicações sobre a moralidade pública que acarreta, é a disseminação do uso e encorajamento da denúncia anônima tanto por órgãos policiais como pelo Fisco.

                        O uso da denúncia anônima na investigação de possíveis delitos de ordem tributária deve cercar-se de máxima cautela. A denúncia não deve jamais servir para a instauração de procedimento fiscalizatório, sem o concurso de outros indícios e provas, sob pena de lesar a garantia do devido processo legal. Como adverte Alberto Nogueira (O Devido Processo Legal Tributário, Rio de Janeiro: Renovar, 1995, p. 88), “ao se referir expressamente o Constituinte, no mencionado art. 5°, incisos LIV e LV, ao ‘devido processo legal’ ‘em processo judicial ou administrativo’, tornou imperiosa a estruturação, também no âmbito da Administração, de um instrumento que assegure ao contribuinte a garantia do due process of law”.

                        De qualquer forma, a investigação com base em denúncia anônima deve levar em conta critérios de seleção ou de amostragem estatística que, somado a outros indícios, justifique a ação fiscal. A definição de critérios técnicos é imprescindível para a otimização dos recursos à disposição do Fisco, tendo em vista o reduzido percentual de denúncias que levam a um resultado positivo. Isto porque, a denúncia anônima é motivada pelos piores sentimentos do ser humano, como o desejo de vingança, a inveja pelo sucesso alheio ou a simples maldade. A garantia do anonimato pelo Poder Público, se, por um lado, põe o denunciante a salvo de represálias, por outro, tende a encorajar os espíritos mesquinhos a darem vazão aos seus baixos instintos de prejudicar os outros. Inspirado, pois, estava o Constituinte ta de 1988 ao repelir o anonimato. Não é compatível com a concepção do Estado Democrático de Direito eleger a delação como método de investigação.

                        Contudo, não deve ser confundida a denúncia anônima com a “delação premiada” que constitui circunstância atenuante no sistema penal brasileiro, concebida como estímulo à verdade processual. A semelhança do direito peregrino, o direito pátrio passou a admitir que o acusado, em torça de redução ou mesmo isenção da pena, colabore com as investigações, denunciando seus comparsas no crime, para a resolução do caso. Assim, o parágrafo único do art. 16 da Lei 9.613/1990, que dispõe sobre os crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo, que o co-autor ou partícipe tenha sua pena reduzida de um a dois terços, se revelar à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa.

                        A delação premiada não é denúncia anônima, pois o delator deve estar bem identificado, já que a contrapartida é a redução da pena. Além disso, é um procedimento típico do processo penal, ainda que relativos a crimes de natureza tributária.

                        Os limitados recursos materiais e humanos disponíveis para a fiscalização devem ser utilizados de modo a produzirem o máximo resultado possível, conforme preconiza o princípio da eficiência da administração pública, prestigiado pelo art. 37 da Constituição. Assim, as denúncias anônimas devem passar por uma triagem e ser encaminhadas para serem investigadas apenas aquelas que representem uma perspectiva de resultado, principalmente quando corroboradas por outros indícios.

                        A atividade do Fisco, para otimizar os recursos disponíveis, deve pautar-se pela racionalidade, em ações fiscais programadas, com base em indicadores e outros parâmetros técnicos, de modo a obter-se o melhor resultado possível.

                        Não é demais advertir para o risco de ações precipitadas, sem maiores fundamentos, que possam ser caracterizadas como abuso de autoridade ou excesso de exação.

 

7. Considerações finais e recomendações:

                        O ordenamento jurídico tributário brasileiro coloca à disposição do Fisco, para cumprir com eficiência a sua missão de zelar pelo correto recolhimento dos tributos que irão financiar o Estado na prestação de serviços públicos à população. Em contrapartida, o Fisco assume o compromisso de exercer suas funções nos estritos limites da lei, de acordo com o devido processo legal e respeitando os direitos e garantias fundamentais do cidadão brasileiro protegidos pela Constituição da República.

                        A Fazenda Pública tem encorajado a denúncia da prática de ilícitos tributários, garantindo o anonimato do denunciante, como medida para mantê-lo a salvo de represálias por parte do denunciado. Porém, a denúncia pode também ser motivada, não pelo espírito cívico pela preservação da coisa pública, mas por sentimentos mais baixos como a vingança, a inveja e o despeito. Por isso, a denúncia anônima deve ser recebida com cautela, para que o Fisco não se torne conivente com situações moralmente duvidosas.

                        A Carta de 1988, art. 37, consagrou, entre outros, o princípio da moralidade dos atos da administração. São bem conhecidas as distinções entre a norma jurídica e a norma moral; uma de cumprimento compulsório e a outra de adesão voluntária ou de convicção íntima. Mas, no momento que a moral passa a integrar o direito positivo, de cumprimento compulsório, dotada de sanção, surge o problema de determinar o conteúdo do princípio da moralidade administrativa. Exige-se agora que o ato administrativo, além de legal, deve ser moral. Ou seja, a imoralidade do ato administrativo pode ensejar a declaração de sua nulidade, deixando de produzir efeitos jurídicos.

                        A introdução do princípio da moralidade administrativa põe em discussão o resgate da dimensão ética do Estado.

                        A constituição do crédito tributário e demais atos praticados pelo Fisco, no curso de procedimento fiscalizatório, desencadeados pelo recebimento de denúncia anônima coloca o problema da moralidade dos atos da administração tributária, na medida que represente vulneração das garantias constitucionais do cidadão-contribuinte e de valores éticos albergados pelo ordenamento jurídico.

                        O procedimento administrativo de lançamento – constituição do crédito tributário – envolve a edição pela autoridade administrativa de norma singular e concreta que, constatada a ocorrência no mundo fenomênico de fato correspondente à descrição hipotética contida na norma geral e abstrata, instaura uma relação jurídica entre o Estado e o sujeito passivo que tem por objeto o pagamento do tributo (ou a penalidade pecuniária em decorrência do descumprimento da obrigação respectiva). A prova de que ocorreu concretamente o fato e que este corresponde à hipótese de incidência compete ao Fisco.

                        Ora, a denúncia anônima não é aceita como prova; nem mesmo pode fundamentar o desencadeamento da ação fiscal.

                        Assim sendo, a denúncia anônima somente poderá ser tomada como ponto de partida da investigação, mas devendo ser confirmada por outros indícios colhidos em investigação preliminar, antes de iniciado o procedimento fiscalizatório.

                        Os servidores fiscais devem tomar as cautelas necessárias, para que a ação fiscalizadora, baseada em denúncia anônima, não venha a ferir direitos constitucionais do contribuinte, especialmente a dignidade da pessoa humana, a privacidade e a defesa da honra, do bom nome e da imagem do cidadão e muito menos venha a consubstanciar-se em resultado eficaz de vindita de particular.

Getri, em Florianópolis, 15 de fevereiro de 2012.

 

 

           Velocino Pacheco Filho                                     Lintney Nazareno da Veiga

              AFRE – mat. 184244-7                                                     Gerente de Tributação