ESTADO DE SANTA CATARINA
SECRETARIA DE ESTADO DA FAZENDA
DIRETORIA DE ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA
GERÊNCIA DE TRIBUTAÇÃO
NOTA TÉCNICA N° 004/2012
Da (im)possibilidade de instauração de procedimento de
fiscalização fundamentado em denúncia anônima e o principio da moralidade administrativa.
1. Considerações iniciais:
Tem
se tornado comum, por parte do Fisco como de organizações policiais, o estímulo
à denúncia de fatos ilícitos ou criminosos, mesmo assegurando ao denunciante o
anonimato, o que o tornaria a salvo de possíveis represálias.
A
medida tem encontrado evidente apoio popular, refletindo a indignação com a
impunidade dos infratores e culpados pela sonegação de tributos que deveriam estar
financiando serviços públicos, em proveito da maioria da população.
Todavia, o emprego de tais métodos, por mais
bem intencionados que sejam seus proponentes, deve cercar-se das cautelas
necessárias para não lesar direitos fundamentais garantidos pela Constituição,
tais como a privacidade, a honra, a imagem e a dignidade da pessoa humana.
A
instauração de procedimento de procedimento fiscal, baseado em denúncia
anônima, não deve ser conduzido de modo a arruinar a reputação do contribuinte,
para, ao final, descobrir-se que era inocente.
O
que depende de prova é a culpa, não a inocência.
2. Os poderes de investigação do Fisco e seus limites:
O
ordenamento jurídico brasileiro dotou o Fisco de amplos poderes de investigação,
facultando à Administração Tributária “identificar, respeitados os direitos individuais
e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do
contribuinte” (CF, art. 145, § 1°).
O Código Tributário
Nacional assegura ao Fisco o direito de “examinar mercadorias, livros,
arquivos, documentos, papéis e efeitos comerciais ou fiscais de comerciantes,
industriais ou produtores”, direito que não pode ser limitado ou excluído por
quaisquer disposições legais (art. 195). Já o art. 197 minho
obriga as pessoas nele enumeradas a prestar as “informações de que disponham
com relação a bens, negócios ou atividades de terceiros”, exceto em relação aos
fatos a que o informante estiver “obrigado a observar segredo em razão de
cargo, ofício, função, ministério, atividade ou profissão” (parágrafo único).
Entre outros, estão obrigados a prestar informações ao Fisco “os bancos, casas
bancárias, Caixas Econômicas e demais instituições financeiras” (inciso II).
Conforme Gilmar Ferreira Mendes , et Al. (Curso de Direito Constitucional. São
Paulo: Saraiva, 2007, p. 376)
“A
Lei Complementar n° 105/2001 atribui aos
agentes tributários, no exercício do seu poder de fiscalização, o poder de
requisitar informações referentes a operações e serviços das instituições
financeiras, independentemente de autorização judicial. A lei cerca a
providência de cuidados formais, com vistas a minimizar os custos para o
direito à privacidade do investigado e assegurar que esteja nítida a
necessidade da medida”.
Os
poderes de investigação do Fisco, conforme parágrafo único do art. 194, “aplica-se
às pessoas naturais ou jurídicas, contribuintes ou não, inclusive às que gozem
de imunidade tributária ou de isenção de caráter pessoal”.
A
Lei Complementar 104/2001 acrescentou parágrafo único ao art. 116 do CTN
dispondo que “a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios
jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato
gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação
tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei
ordinária”. É a famosa norma antielisiva que tem gerado tanta polêmica entre os operadores
do direito.
O
art. 185-A, acrescentado pela Lei Complementar 118/2005, prevê que, “na hipótese
de o devedor tributário, devidamente citado, não pagar nem apresentar bens a
penhora no prazo legal e não forem encontrados bens penhoráveis, o juiz
determinará a indisponibilidade de seus bens e direitos”.
Além
disso, a Lei 8.397, de 6 de janeiro de 1992, institui a medida cautelar fiscal que torna indisponíveis os bens do requerido
“até o limite da satisfação da obrigação tributária”. A cautelar fiscal pode
ser requerida pela Fazenda Pública “no caso de atividade do contribuinte que
dificulte ou impeça a satisfação do crédito tributário”, como no caso de
alienação de bens ou pô-los em nome de terceiros, para frustrar o pagamento do
tributo.
Os
poderes investigatórios do Fisco são amplos, mas não são ilimitados. O limite,
no moderno Estado Democrático de Direito, é dado pelos direitos e garantias
individuais. Assim, a denúncia às autoridades de ato ou fato ilícito, mesmo que
anônima, pode (e deve) ser investigada pela Administração Tributária, porém
desde que desta prática não resulte lesão a valores jurídicos albergados pela
Constituição da República, como:
a)
a dignidade da pessoa humana, como fundamento da República (art. 1°,
III);
b)
a garantia da intimidade, da honra e da imagem (art. 5°, X); e
c)
a presunção de inocência até que seja provada a culpa (art. 5°, LVII).
3. A denúncia:
3.1. Conceito de denúncia:
Entende-se
por denúncia o ato pelo qual alguém leva ao conhecimento da autoridade a
ocorrência de fato contrário à lei e suscetível de punição. De Plácido e Silva,
em sua conhecida obra “Vocabulário Jurídico” (15ª ed., Rio de Janeiro: Forense,
1998), discorre longamente sobre o conteúdo semântico do vocábulo, verbis:
“Derivado
do verbo latino denuntiare
(anunciar, declarar, avisar, citar), é vocábulo que possui aplicação no
Direito, quer Civil, quer Penal ou Tributário com o significado genérico de declaração, que se faz em juízo, ou notícia, que ao mesmo se leva, de fato que deva ser comunicado.
Mas,
propriamente, na técnica do Direito Penal ou do Direito Tributário, melhor se
entende a declaração de um delito praticado por alguém, feita perante a
autoridade a quem compete tomar a iniciativa de sua repressão.
A
denúncia, consistindo numa representação que se faz a respeito do
fato delituoso, mostra-se, assim, iniciativa de qualquer pessoa, a quem o fato
tenha prejudicado, ou que a toma em defesa da sociedade, e com a intenção de
provocar a punição do criminoso ou infrator.
E
constará não somente da narrativa do fato delituoso bem como da indicação da
pessoa que lhe tenha dado causa, quando possível a sua indicação.”
3.2. A denúncia anônima:
A
denúncia é anônima quando seu autor é desconhecido. Por esse mesmo motivo não
tem qualquer valor probatório. Isto por que, de ordinário, a denúncia anônima é
motivada pelos piores sentimentos da humanidade: vingança, inveja, ódio, cobiça
etc. O denunciante anônimo não quer se identificar ou por medo de represália ou
porque a denúncia é inverídica. O que move o denunciante é o desejo de fazer o mal; de prejudicar o denunciado.
Eduardo
Marcial Ferreira Jardim (Dicionário Jurídico Tributário, 3ª ed. São Paulo:
Dialética, 2000, p. 59) entende que a denúncia deve ser formulada por escrito,
“sendo obrigatória a qualificação do seu autor, bem como a descrição minuciosa
dos fatos, de modo a determinar, com segurança, a infração e o infrator”. Tais
providências, previstas em relação ao IPI, pela Lei n° 4.502/64, afastariam a possibilidade do anonimato do
autor da denúncia. O autor sustenta que tais requisitos deveriam ser
generalizados para todos os tributos, desenvolvendo o seguinte argumento:
“A
nosso ver, esses requisitos deveriam ser aplicáveis à administração de qualquer
tributo, porquanto oferecem informações claras, ao menos em tese, ensejando à
Fazenda Pública aquilatar se o fato objeto da denúncia merece ser investigado
ou não. Com isso, evita-se que a Fazenda Pública desloque auditores para uma
tarefa eventualmente inócua, prestando-se, indiretamente, a satisfazer
represálias pessoais estabelecidas entre particulares, o que seria um absurdo”.
Do
ponto de vista da moralidade pública, a ação fiscal baseada em denúncia anônima
ou mesmo o seu incentivo implicaria o patrocínio pela Administração Tributária
da instauração de um estado de delação,
característico dos regimes autoritários e contrário à concepção do Estado
Democrático de Direito.
Com
efeito, a Lei Maior, ao tratar dos direitos e garantias individuais e coletivos,
assegura a livre manifestação do pensamento (art. 5°, IV), porém vedado
o anonimato. O inciso V do mesmo artigo, por sua vez, garante “o direito de
resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral
ou à imagem”. Como pode ser dada resposta
ou pedido de indenização, quando o agravo parte de quem se oculta no anonimato?
Qual
o valor probatório da denúncia? Equivale ao da prova testemunhal em que um
terceiro relata às autoridades os fatos que são de seu conhecimento.
Contudo,
o anonimato é incompatível com o art. 339 do Código Penal, na redação dada pela
Lei n° 10.028, de 19 de outubro de 2000, que tipifica como
crime, sujeito a pena privativa de liberdade, quem “der causa à instauração de
investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação
administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra
alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente”. Mas, para tanto é
necessário que o denunciante seja identificado, sob pena da Administração
Tributária tornar-se cúmplice do crime.
Celso
Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins (Comentários à
Constituição do Brasil, 2° vol. São Paulo:
Saraiva, 1989, p. 43) pintam em cores vivas as conseqüências nefastas do anonimato:
“Ora,
é fácil imaginar que exercido irresponsavelmente, este direito tornar-se-ia uma
fonte de tormentos aos indivíduos na sociedade. A todo instante poderiam ser
objeto de informações inverídicas, de expressões valorativas, de conteúdo
negativo, tudo isto feito sem qualquer benefício social, mas com a inevitável
conseqüência de causar danos morais e patrimoniais às pessoas referidas. A
Constituição cuida neste mesmo parágrafo sob comento de estabelecer um sistema
de responsabilidade bastante desenvolvido e eficaz, senão vejamos: ‘Proíbe-se o
anonimato’. Com efeito esta é a forma mais torpe e vil de emitir-se o
pensamento”.
“A
pessoa que o exprime não o assume. Isto revela terrível vício moral consistente
na falta de coragem. Mas este fenômeno é ainda mais grave. Estimula opiniões
fúteis, as meras sacadilhas, sem que o colhido por
estas maldades tenha possibilidade de insurgir-se contra o seu autor, inclusive
demonstrando a baixeza moral e a falta de autoridade de quem emitiu estes atos”.
“Foi
feliz portanto o Texto Constitucional ao coibir a expressão do pensamento
anônimo”.
“Sem
dúvida, a identificação do responsável pelos juízos e valores emitidos é
condição indispensável para que se desenvolvam os atos posteriores tendentes à
sua responsabilização.”
Todas
essas considerações têm igualmente aplicação à denúncia anônima. Por
decorrência, o constrangimento proporcionado por uma ação fiscal desencadeada
com base em denúncia anônima, além de potencialmente ferir garantias
constitucionais, pode caracterizar ainda o crime de excesso de exação, previsto
no art. 316, § 1° do Código Penal.
4. Denúncia anônima e moralidade administrativa:
O
art. 37 da Constituição Federal enumera como princípios que a Administração
Pública, direta e indireta, de qualquer dos Poderes e de qualquer esfera de
governo, devem observar. São eles o princípio da legalidade, o princípio da
impessoalidade, o princípio da moralidade, o princípio da publicidade e
o princípio da eficiência.
Assim,
apesar de todas as distinções traçadas pela doutrina para separar a moral e o
direito, a moral restou positivada pelo direito, ao menos no que se refere à
Administração Pública. Doravante não basta ao ato administrativo ser legal; ele
também precisa ser moral. O ato administrativo, mesmo legal, pode ser declarado
nulo por ser imoral. Apropriado se revela o escólio de Gilmar Ferreira Mendes et al. (Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 787):
“...
pode-se dizer que a reverência que o direito positivo presta ao princípio da
moralidade decorre da necessidade de pôr em destaque que, em determinados
setores da vida social, não basta que o agir seja juridicamente correto; deve,
antes, ser também eticamente inatacável.
Sendo o direito o mínimo ético
indispensável à convivência humana, a obediência ao princípio da moralidade, em
relação a determinados atos, significa que eles só serão considerados válidos
se forem duplamente conformes à eticidade, ou seja, se forem adequados não apenas às
exigências jurídicas, mas também às de natureza moral. A essa luz, portanto, o
princípio da moralidade densifica
o conteúdo dos atos jurídicos, e em grau tão elevado que a sua inobservância
pode configurar improbidade administrativa
e acarretar-lhe a suspensão dos direito políticos, a perda da função pública, a
indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, sem prejuízo da ação
penal cabível, se a sua conduta configurar, também, a prática de ato tipificado
como crime, consoante o disposto no § 4° do
art. 37 da Constituição”.
A
própria Constituição, art. 5°, LXXIII, prevê ação popular contra ato
lesivo à moralidade administrativa.
4.1. Norma jurídica e norma moral:
Mas,
afinal, no que reside a distinção entre direito e moral; entre norma jurídica e
norma moral?
Em
primeiro lugar a adesão à regra moral é voluntária: a cumprimos porque acreditamos
nela. Já o direito é essencialmente coercitivo: a norma jurídica é dotada de
sanção que garante o seu cumprimento, independentemente de concordância ou
aceitação do seu destinatário. A norma jurídica é dotada de cumprimento
forçado.
Enquanto
o descumprimento da norma moral acarreta apenas uma censura social, o
descumprimento da norma jurídica acarreta sanção e o seu cumprimento forçado.
Isto porque, a adesão ao preceito moral é uma questão de foro íntimo (livre
arbítrio), essencialmente subjetivo; mas a norma jurídica não se submete ao
livre arbítrio, sendo imposta aos seus destinatários (imperatividade
do direito). Hans Kelsen (Teoria Pura do Direito. São
Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 68) distingue moral e direito nos seguintes termos:
“Uma
distinção entre o Direito e a Moral não pode encontrar-se naquilo que as duas ordens sociais prescrevem ou proíbem, mas no como elas prescrevem ou proíbem uma
determinada conduta humana. O Direito só pode ser distinguido essencialmente da
Moral quando – como já mostramos – se concebe como uma ordem de coação, isto é,
como uma ordem normativa que procura obter uma determinada conduta humana
ligando à conduta oposta um ato de coerção socialmente organizado, enquanto a
Moral é uma ordem social que não estatui quaisquer sanções desse tipo, visto
que as suas sanções apenas consistem na aprovação da conduta conforme às normas
e na desaprovação da conduta contrária às normas, nela não entrando sequer em
consideração, portanto, o emprego da força física”.
Quem
for prejudicado pelo descumprimento de norma jurídica pode invocar o poder
jurisdicional do Estado para buscar reparação ao dano que sofreu, o que não acontece
com a norma moral.
A
moral, por ser de foro íntimo, compreende apenas deveres (para consigo mesmo,
para com o próximo, para com Deus), mas o direito compreende tanto deveres como
direitos.
4.2 Conteúdo mínimo do princípio da moralidade
administrativa:
A
diferença entre norma jurídica e norma moral, como visto acima, está bem caracterizada.
Porém o art. 37 da Constituição acaba por positivar a moral, de modo que a
regra moral passa a constituir o conteúdo de regra de direito positivo que,
como tal, passa a ser dotada de sanção e aplicada pelas autoridades
judiciárias. O problema agora consiste em determinar qual o conteúdo da
moralidade administrativa. Qual o critério para dizer que determinada conduta é
moral ou imoral e que o ato administrativo é nulo ou não.
A
moral é subjetiva e depende de adesão a suas regras. As condutas aceitas como
morais variam de um para outro indivíduo. No campo da moralidade administrativa
(que se aplica à relação entre Administração e administrados), há um consenso
entre os doutrinadores de que a lealdade e a boa-fé constituem o seu conteúdo
mínimo. Nesse sentido, leciona Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de Direito Administrativo. 8ª ed.
São Paulo: Malheiros, 1996, p. 69):
“Segundo
os cânones da lealdade e da boa-fé a Administração haverá de proceder em
relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo-lhe interdito
qualquer comportamento astucioso, eivado de malícia, produzido de maneira a
confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos por parte dos
cidadãos”.
No
mesmo sentido, se posiciona Diva Malerbi (O Princípio da Moralidade no Direito
Tributário. Coordenador Ives Gandra da Silva
Martins. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais: Centro de Extensão
Universitária, 1998, p. 58):
“Enfim,
estão compreendidos no âmbito do princípio da moralidade, os da lealdade e
boa-fé. A moralidade administrativa é princípio desdobrado da confiança que o
povo depositou no poder e na legitimidade da atividade administrativa em
relação à gestão da coisa pública. Em conseqüência, a moralidade no contexto
dos princípios erigidos à administração, guarda primazia, pois toda atuação
estatal deve partir e buscar a dimensão ética. No Estado Democrático de
Direito, a legalidade legítima da conduta administrativa é, simplesmente, legalidade
moral. A moralidade do direito é, assim, o aperfeiçoamento das atividades da
administração pública”.
Antônio
da Silva Cabral (Processo Administrativo
Fiscal. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 58), por sua vez, não discrepa desse
entendimento:
“Procura-se,
atualmente, tornar realidade o princípio
da lealdade, em virtude do qual entre o fisco e o contribuinte deve existir
uma relação de mútua confiança e colaboração, tudo com base na mais estrita
lealdade. De um lado, o fisco deve facilitar ao contribuinte o conhecimento da
lei e deve orientá-lo no cumprimento de seus deveres fiscais, e não se portar
apenas como o fiscal da lei que espreita o mínimo deslize do particular para
puni-lo”.
4.3. A moralidade administrativa e a dimensão ética do
Estado Democrático de Direito:
Mas,
não basta definir o conteúdo mínimo do princípio da moralidade administrativa.
É preciso avançar. A plenitude do princípio somente poderá ser revelada mediante
o resgate da dimensão ética do Estado Democrático de Direito. Nesse conceito
abrigam-se, de um lado, a democracia entendida como único fundamento legítimo
do governo, e, de outro, o Estado de direito, entendido como o Estado obrigado
a observar as leis que ele próprio edita. Conforme Ricardo Lobo Torres (Sistemas Constitucionais Tributários. Rio
de Janeiro: Forense, 1986, p. 63):
“Coincidindo com o
Estado Liberal, por oposição ao Estado Absolutista, o Estado de Direito foi
entendido por Kant como a união dos homens sob o império das leis do Direito. Caracteriza-se,
sobretudo, por ser o reino da legalidade com o objetivo precípuo de garantir os
direitos fundamentais, especialmente a liberdade, na sua mais ampla acepção, e
a igualdade, em seu sentido formal”.
Paulo
Bonavides (Curso de Direito Constitucional. 13ª ed.
São Paulo: Malheiros, 2003, p. 398) distingue duas acepções de Estado de
Direito que se sucedem no tempo histórico: a primeira “se vincula
doutrinariamente ao princípio da legalidade”
e a segunda “deslocou para o respeito dos direitos fundamentais o centro de
gravidade da ordem jurídica”. Conforme leciona esse autor:
“A
revolução constitucional que deu origem ao segundo Estado de Direito principiou
a partir do momento em que as declarações de direitos, ao invés de “declarações
político-filosóficas”, se tornaram “atos de legislação vinculantes” ....”
“Fica
assim erigido em barreira ao arbítrio, em freio à liberdade de que, à primeira
vista, se poderia supor investido o titular da função legislativa para
estabelecer e concretizar fins políticos” (p. 400).
Com
razão conclui Fábio Konder Comparato
(Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006, p. 622) que os direitos humanos “em sua totalidade – não só os
direitos civis e políticos, mas também os econômicos, sociais e culturais; não
apenas os direitos dos povos, mas ainda os de toda a humanidade, compreendida
hoje como novo sujeito de direitos no plano mundial – representa a cristalização
do supremo princípio da dignidade humana”.
Nesse
ponto, cabe trazer à discussão a reflexão de Emmanuel Levinas
(Entre nós: ensaios sobre alteridade. 5ª ed. Petrópolis: Vozes, 2010, p.
236):
“A
descoberta de direitos que, sob o título de direitos do homem, se relacionam à
própria condição de ser homem, independentemente de qualidades como nível
social, força física, intelectual e moral, virtudes e talentos, pelos quais os
homens diferem entre si, e a elevação destes direitos ao nível de princípios
fundamentais da legislação e da ordem social, certamente marcam um momento
essencial da consciência ocidental”.
“E o Senhor disse a Cain:
Onde está teu irmão? Abel? E ele respondeu: Não sei. Porventura sou eu o guarda
de meu irmão”? [Gênesis, 4; 9]
Da
perspectiva de uma ética da Alteridade – uma ética não só voltada para o outro,
mas construída a partir do outro –, todos os homens são guarda de todos os homens,
no sentido de serem responsáveis por todos os homens. Acrescenta o filósofo
(id. p. 130):
“O
encontro com Outrem é imediatamente minha responsabilidade por ele. A responsabilidade
pelo próximo é, sem dúvida, o nome grave do que se chama amor do próximo, amor
sem Eros, amor em que o momento ético domina o momento passional, amor sem
concupiscência”.
A
construção de uma sociedade livre, justa e solidária, proclamada como um dos
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (CF, art. 3°,
I) somente se torna viável mediante a adoção de políticas fundadas na ética da
alteridade. A responsabilidade pelo próximo de que fala Levinas
é, também e principalmente, a responsabilidade pelo terceiro, por aquele cujo
rosto desconheço, mas pelo qual sou responsável.
“A
falta social é cometida sem que eu o saiba, em relação a uma multiplicidade de
terceiros que eu não olharei jamais de frente, que eu não tornarei a encontrar
na face de Deus e por quem Deus não pode responder” (id. p. 43).
A
construção de um conceito de moralidade administrativa adequado ao projeto de
um Estado capaz de realizar a sociedade solidária – ideal contido na Carta –
passa pela adoção da ética da alteridade como princípio norteador. No
comentário de Ozanan Vicente Carrara
(Levinas: do sujeito ético ao sujeito político:
elementos para pensar a política outramente. Aparecida: Idéias & Letras,
2010, p. 166):
“Um
Estado ético seria o único capaz de apontar para um além, para uma utopia do
humano. O Estado ético deixaria de se ver como fim para se descobrir como meio
capaz de transcender em direção à responsabilidade pelo outro”.
Em
uma abordagem do conceito de moralidade administrativa que se aproxima da
temática proposta por Levinas, Marco Aurélio Greco
(Notas sobre o Principio da Moralidade. Direito Tributário: homenagem a Alcides
Jorge Costa. Coordenação de Luis Eduardo Schoiueri.
Vol. I, São Paulo: Quartier Latin,
2003, pgs. 384-5) comenta que “conduta imoral não é a
que ‘desobedece’ um padrão prévio, mas sim a que causa ‘injustiça’ a alguém.
Moralidade, pois, é conceito que só pode ser aferido em relação ao Outro que é
destinatário da conduta”. A ética da alteridade, pois, fornece um critério para
o relacionamento entre Administração e administrado ou entre Fisco e contribuinte.
Conclui o autor citado que:
“O
princípio da moralidade, portanto, não olha para o interior do Ser Humano, mas
sim para o seu exterior, onde se encontram os destinatários da sua ação, ou
seja, aqueles que poderão sofrer as injustiças da sua conduta”.
“Exigir
um comportamento moral, portanto, é exigir que a conduta se volte para o
destinatário e suas circunstâncias e que não inviabilize o justo equilíbrio
buscado pela própria norma”.
O
conteúdo axiológico do princípio da moralidade administrativa encontramos no
próprio texto constitucional. A Carta, em seus vários dispositivos, abriga valores
e sobrevalores, para cuja realização devem estar
orientadas as políticas pública e a própria atuação da Administração, no dia dia.
Assim,
a dignidade da pessoa humana, como um dos fundamentos do Estado brasileiro,
encontramos no art. 1°, III. O mesmo artigo diz que o Brasil é um Estado
Democrático de Direito e o parágrafo único do mesmo artigo declara que “todo o
poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente”. A democracia, portanto, mais que forma de governo, é, em si
mesma, um valor. Conforme Jürgen Habermas (Direito e democracia: entre facticidade e validade. Vol. II, Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997. p. 276): “O Estado democrático de direito transforma-se em um
projeto, resultado e, ao mesmo tempo, mola de uma racionalização do mundo da
vida, o qual ultrapassa as fronteiras do político”.
Isto
por que a democracia, enquanto processo comunicativo, tem como pressuposto que
todos tem o direito de serem ouvidos. Acrescenta Leonardo Avritzer
(A moralidade da democracia: ensaios em teoria habermasiana
e teoria democrática. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: UFMG, 1996, p.
122) que: “A validade da democracia está inerentemente ligada ao processo de
argumentação através do qual um indivíduo reconhece ao outro enquanto igual na
utilização da linguagem”.
Por
conseguinte, “o primeiro pilar de uma concepção moral de democracia consiste na
idéia da política enquanto autodeterminação de uma comunidade de iguais capazes
de discutir as regras de sua organização” (id. p. 154).
“A
identidade da nação de cidadãos não reside em características étnico-culturais
comuns, porém na prática de pessoas que exercitam ativamente seus direitos
democráticos de participação e de comunicação” ( Habermas, id. p. 283).
Fábio
K. Comparato (op. cit. p. 665) define o regime
democrático como “aquele em que a soberania pertence ao povo (...) para a
realização do bem comum de todos (...), submetendo-se sempre o exercício desse
poder soberano às normas jurídicas que consubstanciam os grandes princípios
éticos (...)”. O princípio democrático (governo do povo) deve ser equilibrado
pelo Estado de direito (governo das leis), na medida que dão juridicidade aos
valores morais reconhecidos pelo ordenamento. A vontade da maioria e o governo
das assembléias podem igualmente ser tirânicos se o seu exercício não for contrabalançado
pelos princípios éticos acolhidos pelo ordenamento jurídico.
Assim,
podemos compreender o Estado de direito como “a organização política em que a
vontade dos titulares do poder, tanto do soberano, quanto dos governantes, não
pode nunca sobrepor-se às normas fundamentais do Estado” (id. p. 664).
O
resgate da dimensão ética do Estado passa pela compreensão do bem comum, enquanto “princípio
edificador da sociedade humana e fim para o qual ela deve se orientar do ponto
de vista natural e tem poral” (Norberto Bobbio et al. Dicionário
de Política. 11ª ed. Brasília: UnB,
1998). O Catecismo da Igreja Católica (São Paulo: Loyola, 2000, p. 507)
conceitua bem comum como “o conjunto daquelas condições da vida social que permitem
aos grupos e a cada um de seus membros atingirem de maneira mais completa e
desembaraçadamente a própria perfeição”. Distingue três elementos essenciais:
(i) o respeito pela pessoa; (ii) o bem estar social e o desenvolvimento do
próprio grupo; e (iii) a paz e segurança. A realização do bem comum é a tarefa
precípua do Estado. “Em nome do bem comum, os poderes públicos são obrigados a
respeitar os direitos fundamentais e inalienáveis da pessoa humana”. O bem
comum inclui o acesso ao que é necessário para levar uma vida verdadeiramente
humana: alimento, vestuário, saúde, trabalho, educação e cultura, informação
conveniente, direito de fundar um lar etc.
“Se
cada comunidade humana possui um bem comum que lhe permite reconhecer-se como
tal, é na comunidade política que
encontramos sua realização mais completa. Cabe ao Estado defender e promover o
bem comum da sociedade civil, dos cidadãos e dos organismos intermediários”.
4.4. Moralidade administrativa como fundamento da relação
Fisco-contribuinte:
As
relações entre o contribuinte e a Administração Tributária devem estar baseadas
na lealdade e na boa-fé, sem manobras astuciosas ou eivadas de malicia (princípio
da moralidade administrativa no seu conteúdo mínimo). O contribuinte é, antes
de tudo, um cidadão brasileiro, convocado para contribuir para o financiamento
do setor público. Como contrapartida do dever de contribuir, ele tem o direito
de ser tributado de acordo com a sua capacidade econômica e suas
características pessoais (CF, art. 145, § 1°); garantido o devido
processo legal, o contraditório e a ampla defesa, quando não concordar com o tributo
que lhe for exigido.
Conforme
leciona Celso Ribeiro Bastos (O Princípio
da Moralidade no Direito Tributário. Coordenador Ives Gandra
da Silva Martins. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais: Centro de Extensão
Universitária, 1998, p. 84):
“Existe, por fim, outra categoria de ato
administrativo contrário à moral administrativa. Nesta, o ato não contraria a
lei e também não é conseqüência do desvio de poder. Ofende a moralidade na
medida em que, apesar da atuação ser prevista em lei, prejudicar os
particulares. A atuação da Administração, aqui, não está acobertando atos violadores
da ideologia legal; ocorre simplesmente o uso da norma administrativa em
prejuízo do particular. O benefício trazido a todos é menor do que o ônus
suportado pelo receptor do ato”.
Pela ótica da ética da alteridade, o
contribuinte, para o servidor, é o outro pelo qual ele é responsável. Na
situação comentada por Celso Ribeiro Bastos, a imoralidade do ato
administrativo consiste exatamente no prejuízo que venha a causar, sem que tal
encontre justificativa no benefício social. Essa é uma situação em que o
princípio da moralidade administrativa se aproxima do princípio da
proporcionalidade, sem que com este se confunda. Prossegue o mesmo autor:
“Por
serem os agentes fiscais autoridades públicas, devem obediência, em seu agir,
às regras do ordenamento jurídico, e também, da mesma forma, ao princípio
constitucional da moralidade administrativa. Aliás, tal princípio diz respeito
aos próprios meios de ação escolhidos pela Administração através de seus
agentes” (ibidem).
No
magistério de Tércio Sampaio Ferraz Jr. (Direito Constitucional: liberdade de
fumar, privacidade, estado, direitos humanos e outros temas. Barueri SP: Manole, 2007, p. 388), temos que:
“A
obediência à moralidade é princípio constitucional (CF, art. 37). Não se trata
de regra difusa ou de regra sobre regras, mas de regra imanente aos atos
administrativos. Ou seja, configura o ato, não a norma que o autoriza. Nesse
sentido, não se confunda legalidade com moralidade. Legalidade é requisito da
norma, não do ato que a emana. Assim, uma norma pode ser legal, sem ser moral o
ato que a estabelece. Legalidade é requisito material da norma e formal da
competência. Moralidade diz respeito ao ato (que, assim, não se reduz à
legalidade da competência e do mérito). Destarte, desvirtuar os motivos do ato
para justificar (motivar) as suas conseqüências fere a moralidade”.
O
princípio da moralidade administrativa, visto da perspectiva da ética da
alteridade, tem o potencial de modificar radicalmente as relações entre Fisco e
contribuinte, não só, no seu conteúdo mínimo de lealdade e boa-fé, mas também e
principalmente na construção de uma sociedade solidária e na consecução do bem
comum. Nesse mesmo sentido, o escólio de Marco Aurélio Greco (op. cit.):
“Neste
contexto, legalidade e moralidade se compõe, na medida em que, dentro da
legalidade e sem infringi-la, é possível ter uma conduta moral no sentido de reconhecimento
do significado e relevância do destinatário do ato, como verdadeiro integrante
de um conjunto abrangente. Isto é possível em duplo sentido, seja dimensionando
(dentro da legalidade) a ação e não cometendo excessos, ainda que legalmente
autorizados; seja encontrando na interpretação da lei (sem deturpá-la) o
sentido que melhor atenda a um parâmetro de justiça, vista sob a perspectiva do
destinatário”.
“Esta
visão quebra a relação de dominação do sujeito sobre o objeto e instaura uma
relação de convivência entre interlocutores”.
5. Valor probatório da denúncia:
5.1. A prova na constituição do crédito tributário:
O
lançamento, como ato administrativo que constitui o crédito tributário,
compreende a edição de norma singular (dirigida a determinado sujeito passivo)
e concreta (relativa à ocorrência de determinado fato jurígeno), em cujo
antecedente se afirma a ocorrência do fato e sua correspondência à descrição do
fato hipotético contido no antecedente da norma geral e abstrata extraída pelo
intérprete/aplicador do texto do direito positivo. O conseqüente, por sua vez,
estabelece uma relação jurídica entre o sujeito ativo (titular do direito
subjetivo de exigir o tributo) e o sujeito passivo (pessoa obrigada ao seu
recolhimento) que tem por objeto a satisfação da obrigação tributária (o
pagamento do tributo).
O
ato pelo qual a autoridade administrativa afirma a ocorrência do fato jurígeno
e que este corresponde ao fato hipotético referido pela norma jurídica geral e
abstrata introduz esse fato no mundo jurídico: deixa de ser mero evento ou fato-no-mundo para se tornar fato jurídico e, desse modo,
produzir efeitos jurídicos (como o de tornar o tributo exigível). A introdução
do evento no mundo jurídico como fato jurídico constitui a prova que, nas
palavras de Maria Rita Ferragut (Presunções no
Direito Tributário. São Paulo: Dialética, 2001, p. 46), é “a proposição
descritiva individual e concreta de enunciação do evento que se quer provar”.
Conforme
magistério de Francesco Carnelutti (Teoria Geral do Direito. São Paulo:
LEJUS, 1999, p. 521), “As provas são assim um equivalente sensível do fato para
uma avaliação, no sentido de que proporcionam ao avaliador uma percepção
mediante a qual lhe é possível adquirir o conhecimento desse fato”.
Entretanto
é preciso advertir que a prova não é a realidade mesma, mas a realidade
percebida pela ótica do direito, conforme as categorias do próprio direito.
Assim, a prova, segundo Ferragut, é “a articulação linguística do significado da realidade (e não a própria
realidade, inatingível)”. Pois, é preciso distinguir o que é, independentemente
de ser conhecido pelo homem (ôntico), do que é como
conhecido pelo homem (ontológico) e do que é como conhecido pelo direito
(prova). É ainda Ferragut que conceitua o meio de prova como “o enunciado passível
de ser produzido pelas partes, que tem por conteúdo a ocorrência ou inocorrência
de um determinado acontecimento”.
Cabe
à autoridade administrativa produzir a prova, ao construir o antecedente da
norma individual e concreta (lançamento tributário) que instaura a relação
jurídica tributária e, assim, constitui o crédito tributário como direito
subjetivo da Fazenda Pública de exigir o pagamento do tributo. “A produção da
prova de um fato torna-se ônus para a parte que tem interesse na sua afirmação”
(Carnelutti, op. cit. p. 541).
5.2. A denúncia como prova testemunhal:
A
denúncia enquanto notícia de fato delituoso levado ao conhecimento da autoridade
tem o valor da prova testemunhal. No processo administrativo é pouco utilizada
como elemento probatório, em contraste com a prova documental. Geralmente,
quando trazida à colação, é reduzida à termo pela autoridade fiscal e não tem,
em hipótese alguma, valor de prova plena, devendo ser cotejada com outros
elementos probatórios.
Sobre
o testemunho, preleciona a autoridade inconteste de Pontes de Miranda
(Comentários ao Código de Processo Civil, tomo IV, arts. 282-443, Rio de
Janeiro: Forense, 1974, p. 390):
“As
testemunhas são pessoas que aparecem no processo, porém não na relação jurídica
processual; são fatos na existentia fluens dessa,
que é a instância. Daí serem inconfundíveis com os sujeitos processuais,
inclusive como o mais leve interveniente adesivo, que não chega a ser parte.
Falta-lhe o pressuposto de qualquer interesse na causa. São chamadas para expor
em juízo o que conhecem de certos fatos que têm capital importância ou alguma
importância para a causa. Expondo-os, enunciam o que se passou, tal como os
sentidos, incluído o muscular, lhes revelaram, e tal como lhes ficou na
memória: representações e ilações lógicas, nas quais tem de entrar o
coeficiente psicológico do depoente testemunhal. De regra, o que delas se
espera é apenas a descrição, a narração, tal como o faz o homem comum. Se
intervém o elemento do ofício, da arte, da técnica, da ciência da testemunha, –
ou ocorre certa valorização dela, ou se mescla à sua figura a do perito, sem
que essa se exteriorize no campo processual.”
Naturalmente,
o anonimato da testemunha invalida o seu depoimento como prova. Assim é no
processo penal, com o qual, sob certos aspectos, guarda maior semelhança o
processo tributário. Nesse sentido, o magistério de Tourinho Filho (Código de
Processo Penal Comentado, vol. 1, 3ª ed. São Paulo, Saraiva, 1998, p. 404):
“Uma
vez regularmente intimada, tem a testemunha o dever de comparecer perante a
autoridade para depor, e, nesse ato processual, distinguem-se quatro momentos: a)
a testemunha será perguntada sobre seu nome, naturalidade, estado, filiação, ou
simplesmente exibe seu documento de identidade que não contenha rasura; b)
será indagada sobre possível vinculação entre ela e as partes materiais; c) se
for o caso, presta o compromisso; e, finalmente, d) o objeto concreto do seu
depoimento”.
“Por
primeiro, procura-se constatar se a pessoa que comparece perante a autoridade
para depor é a mesma arrolada pelas partes.”
A
identificação da testemunha, pois, é procedimento fundamental para a validade
probatória do seu depoimento. Deve-se certificar que o depoente é o mesmo que foi originalmente arrolado.
Assim, como admitir depoimento anônimo? Como admiti-lo quando mesmo as cautelas
de que se cerca a lei adjetiva são insuficientes para garantir-lhe a
autenticidade? Sobre o valor probatório do testemunho comenta o mesmo autor por
último citado (op. cit. p. 406):
“Qual
o valor da prova testemunhal? Sabemos não existir nenhuma prova com valor
probatório absoluto, principalmente em se tratando da testemunhal. A testemunha
às vezes mente por ruindade, por malignidade, por perversidade, ou, então, para
lograr alguma vantagem. Pode pensar que está sendo sincera, quando, de fato,
seu depoimento não é verdadeiro. Há várias circunstâncias que podem conduzi-las
a essa situação. Explica-se em medicina legal que os fatos são apreendidos
pelos sentidos que geram os estímulos, e estes são levados imediatamente aos
centros cerebrais formando as sensações. Assim quando alguém faz um disparo, o
sentido da audição o percebe e gera o estímulo; este é levado ao cérebro e lá
se registra a sensação. Se a pessoa nunca ouviu um tiro, não pode saber do que
se trata. Mas se já o ouviu, a sensação anterior, armazenada no cérebro, aliada
à nova sensação, forma a percepção e, já agora, ela identifica o barulho
produzido pelo disparo. A ciência já demonstrou que essas percepções podem ser
alteradas por circunstâncias e fatores
vários. A maior ou menor duração dos estímulos, ou o maior ou menor grau
de iluminação, o silêncio, a falta de atenção, a imaginação, a emoção, as
ilusões, a perturbação da memória, a falta de interesse, a paixão, as doenças
mentais, a histeria, a epilepsia, o tempo, dentre outras causas, internas ou
externas, podem levar a testemunha, ainda que queira dizer a verdade, a
desvirtuar os fatos. Donde se concluir que a prova testemunhal, como qualquer
outro meio de prova, é de valor falível e precário. Há que notar ainda o fator
memória; é claro que, uma vez apreendidos, os fatos nela são guardados. Há
pessoas com memória privilegiada, outras, não, e, finalmente, algumas não têm
interesse em guardar determinados fatos”.
“Quando
a testemunha comparece perante a autoridade para reproduzir os fatos
apreendidos pelos seus sentidos podem surgir, inconscientemente, deformações da
verdade, quase sempre ditadas pela falta de atenção, desinteresse ou outro
motivo qualquer. Podem ocorrer distorções provocadas por distúrbios psicossensoriais, confusão, falta de memorização e outros
fenômenos. No afã de pretender esclarecer o fato a que assistiu, a testemunha,
normalmente, busca na memória a lembrança do acontecimento e, às vezes, esbarra
num obstáculo: trata-se de detalhe que pode ser muito importante, e à míngua de
uma perfeita exatidão, procura preencher a lacuna com dados que lhe foram transmitidos
por terceiros e, mesmo inconscientemente pela própria imaginação.”
Todo
esse tortuoso processo psicológico, descrito por Tourinho Filho, refere-se ao
depoimento testemunhal, cujo depoente está perfeitamente identificado e que
prestou compromisso perante o magistrado. O que não esperar do depoente que
permanece no anonimato, a salvo de qualquer responsabilidade por suas
declarações? O que não fará a mulher traída ou o empregado demitido por justa
causa ou o concorrente comercial se puder, mantendo-se anônimo, denunciar os
negócios do contribuinte perante a Administração Tributária?
5.3. A (in)validade probatória da denúncia anônima:
A
denúncia, quando o denunciante está devidamente identificado nos autos, tem
valor de prova testemunhal. Porém, a denúncia anônima é imprestável como prova.
Com
efeito, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Habeas Corpus 104.005, relator Min.
Jorge Mussi (DJe
05/12/2011), decidiu que:
“1. Esta Corte Superior de Justiça, com supedâneo em entendimento adotado por maioria pelo Plenário do Pretório Excelso nos autos do Inquérito n. 1957/PR, tem entendido que a notícia anônima sobre eventual prática criminosa, por si só, não é idônea para a instauração de inquérito policial ou deflagração da ação penal, prestando-se, contudo, a embasar procedimentos investigatórios preliminares em busca de indícios que corroborem as informações da fonte anônima, os quais tornam legítima a persecução criminal estatal”. No direito penal, não se admite, portanto, a instauração de inquérito policial com base somente em denúncia anônima. Apenas com a pesquisa de outros indícios que confirmem os fatos denunciados é que o inquérito pode ser instaurado. Do mesmo relator é o AgRg no AgRg 1.346.501 MS (DJe 10/08/2011) que admite a denúncia anônima apenas se “precedida de investigação preliminar e respeitados os direitos e garantias fundamentais, pode subsidiar a instauração da persecução penal”. O mesmo se aplica à instauração de procedimento fiscal. Os valores éticos acolhidos pela Constituição, como o da dignidade da pessoa humana e da proteção da honra, da imagem etc. não podem ser enxovalhados por uma ação policial ou fiscal imprudentemente desencadeada com base em denúncia anônima. A mesma Turma, considerando a vedação ao anonimato contida pela Constituição da República, decidiu no julgamento do HC 190.334 SP, em que foi relator o Min. Napoleão Nunes Maia Filho (DJe 09/06/2011):
“1.
O sistema jurídico do País, composto de múltiplos princípios e inúmeras regras,
exegeticamente harmonizados na Jurisprudência dos Tribunais e interpretados nas
lições da Doutrina Jurídica, não admite que se instaure a persecução penal,
na sua fase inquisitorial ou na sua fase processual, a partir de delações
anônimas, ex vi do art. 5o., IV
da Carta Magna”.
[...]
“4. É indispensável, assim, nos termos da norma constitucional e da norma legal que a regulamentou, a identificação clara e precisa dos indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal, e a demonstração de que somente por meio dessa medida extrema se poderá apurar o ilícito penal sob investigação; dessa forma, a sistemática do nosso ordenamento jurídico constitucional não permite a movimentação de aparato investigatório oficial, seja ele qual for, sem um mínimo de prova, não sendo mesmo razoável que aqueles indícios de autoria possam ser recolhidos a partir somente de uma denúncia apoiada no anonimato do denunciante, sem o apoio de outros elementos probatórios mais densos, robustos e, principalmente, confiáveis”.
Não discrepa o
entendimento da Sexta Turma, no julgamento do HC 137.349 SP, em que foi
relatora a Ministra Maria Thereza de Assis Moura (DJe
30/05/2011):
“A denúncia anônima, como bem definida pelo pensamento desta Corte, pode originar procedimentos de apuração de crime, desde que empreendida investigações preliminares e respeitados os limites impostos pelos direitos fundamentais do cidadão, o que leva a considerar imprópria a realização de medidas coercitivas absolutamente genéricas e invasivas à intimidade tendo por fundamento somente este elemento de indicação da prática delituosa”. “A exigência de fundamentação das decisões judiciais, contida no art. 93, IX, da CR, não se compadece com justificação transversa, utilizada apenas como forma de tangenciar a verdade real e confundir a defesa dos investigados, mesmo que, ao depois, supunha-se estar imbuída dos melhores sentimentos de proteção social”. Da mesma forma que sucede no inquérito policial, a denúncia anônima não é idônea para fundamentar a instauração de medida de fiscalização. A informação trazida pelo denunciante deve, em investigação preliminar, conduzida de forma a preservar os direitos e garantias fundamentais, ser confirmada por outros indícios. Não se deve esquecer que o contribuinte é um cidadão que contribui com o seu trabalho e esforço para a prosperidade e riqueza da coletividade e, como tal, beneficia-se da presunção de inocência até que seja provado o contrário. Por esse motivo, o aparato fiscalizador do Estado não deve ser deflagrado sem um mínimo de elementos probatórios, bem construídos e confiáveis, não podendo apoiar-se apenas em denúncia em que o denunciante permanece anônimo.
6. A denúncia anônima na investigação do ilícito
tributário:
Sobremodo
alarmante, pelas sérias implicações sobre a moralidade pública que acarreta, é
a disseminação do uso e encorajamento da denúncia anônima tanto por órgãos
policiais como pelo Fisco.
O
uso da denúncia anônima na investigação de possíveis delitos de ordem
tributária deve cercar-se de máxima cautela. A denúncia não deve jamais servir
para a instauração de procedimento fiscalizatório,
sem o concurso de outros indícios e provas, sob pena de lesar a garantia do
devido processo legal. Como adverte Alberto Nogueira (O Devido Processo Legal
Tributário, Rio de Janeiro: Renovar, 1995, p. 88), “ao se referir expressamente
o Constituinte, no mencionado art. 5°,
incisos LIV e LV, ao ‘devido processo legal’ ‘em processo judicial ou
administrativo’, tornou imperiosa a estruturação, também no âmbito da
Administração, de um instrumento que assegure ao contribuinte a garantia do due process of law”.
De
qualquer forma, a investigação com base em denúncia anônima deve levar em conta
critérios de seleção ou de amostragem estatística que, somado a outros
indícios, justifique a ação fiscal. A definição de critérios técnicos é
imprescindível para a otimização dos recursos à disposição do Fisco, tendo em
vista o reduzido percentual de denúncias que levam a um resultado positivo.
Isto porque, a denúncia anônima é motivada pelos piores sentimentos do ser
humano, como o desejo de vingança, a inveja pelo sucesso alheio ou a simples
maldade. A garantia do anonimato pelo Poder Público, se, por um lado, põe o denunciante
a salvo de represálias, por outro, tende a encorajar os espíritos mesquinhos a
darem vazão aos seus baixos instintos de prejudicar os outros. Inspirado, pois,
estava o Constituinte ta de 1988 ao repelir o anonimato. Não é compatível com a
concepção do Estado Democrático de Direito eleger a delação como método de
investigação.
Contudo,
não deve ser confundida a denúncia anônima com a “delação premiada” que
constitui circunstância atenuante no sistema penal brasileiro, concebida como
estímulo à verdade processual. A semelhança do direito peregrino, o direito
pátrio passou a admitir que o acusado, em torça de redução ou mesmo isenção da
pena, colabore com as investigações, denunciando seus comparsas no crime, para
a resolução do caso. Assim, o parágrafo único do art. 16 da Lei 9.613/1990, que
dispõe sobre os crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as
relações de consumo, que o co-autor ou partícipe tenha sua pena reduzida de um
a dois terços, se revelar à autoridade policial ou judicial toda a trama
delituosa.
A
delação premiada não é denúncia anônima, pois o delator deve estar bem identificado,
já que a contrapartida é a redução da pena. Além disso, é um procedimento
típico do processo penal, ainda que relativos a crimes de natureza tributária.
Os
limitados recursos materiais e humanos disponíveis para a fiscalização devem
ser utilizados de modo a produzirem o máximo resultado possível, conforme preconiza
o princípio da eficiência da administração pública, prestigiado pelo art. 37 da
Constituição. Assim, as denúncias anônimas devem passar por uma triagem e ser
encaminhadas para serem investigadas apenas aquelas que representem uma
perspectiva de resultado, principalmente quando corroboradas por outros indícios.
A
atividade do Fisco, para otimizar os recursos disponíveis, deve pautar-se pela
racionalidade, em ações fiscais programadas, com base em indicadores e outros parâmetros
técnicos, de modo a obter-se o melhor resultado possível.
Não
é demais advertir para o risco de ações precipitadas, sem maiores fundamentos,
que possam ser caracterizadas como abuso de autoridade ou excesso de exação.
7. Considerações finais e recomendações:
O
ordenamento jurídico tributário brasileiro coloca à disposição do Fisco, para
cumprir com eficiência a sua missão de zelar pelo correto recolhimento dos
tributos que irão financiar o Estado na prestação de serviços públicos à
população. Em contrapartida, o Fisco assume o compromisso de exercer suas
funções nos estritos limites da lei, de acordo com o devido processo legal e respeitando
os direitos e garantias fundamentais do cidadão brasileiro protegidos pela
Constituição da República.
A
Fazenda Pública tem encorajado a denúncia da prática de ilícitos tributários,
garantindo o anonimato do denunciante, como medida para mantê-lo a salvo de represálias
por parte do denunciado. Porém, a denúncia pode também ser motivada, não pelo
espírito cívico pela preservação da coisa pública, mas por sentimentos mais
baixos como a vingança, a inveja e o despeito. Por isso, a denúncia anônima
deve ser recebida com cautela, para que o Fisco não se torne conivente com
situações moralmente duvidosas.
A
Carta de 1988, art. 37, consagrou, entre outros, o princípio da moralidade dos
atos da administração. São bem conhecidas as distinções entre a norma jurídica
e a norma moral; uma de cumprimento compulsório e a outra de adesão voluntária
ou de convicção íntima. Mas, no momento que a moral passa a integrar o direito
positivo, de cumprimento compulsório, dotada de sanção, surge o problema de
determinar o conteúdo do princípio da moralidade administrativa. Exige-se agora
que o ato administrativo, além de legal, deve ser moral. Ou seja, a imoralidade
do ato administrativo pode ensejar a declaração de sua nulidade, deixando de
produzir efeitos jurídicos.
A
introdução do princípio da moralidade administrativa põe em discussão o resgate
da dimensão ética do Estado.
A
constituição do crédito tributário e demais atos praticados pelo Fisco, no
curso de procedimento fiscalizatório, desencadeados
pelo recebimento de denúncia anônima coloca o problema da moralidade dos atos
da administração tributária, na medida que represente vulneração das garantias
constitucionais do cidadão-contribuinte e de valores éticos albergados pelo ordenamento
jurídico.
O
procedimento administrativo de lançamento – constituição do crédito tributário –
envolve a edição pela autoridade administrativa de norma singular e concreta
que, constatada a ocorrência no mundo fenomênico de fato correspondente à
descrição hipotética contida na norma geral e abstrata, instaura uma relação
jurídica entre o Estado e o sujeito passivo que tem por objeto o pagamento do
tributo (ou a penalidade pecuniária em decorrência do descumprimento da
obrigação respectiva). A prova de que ocorreu concretamente o fato e que este
corresponde à hipótese de incidência compete ao Fisco.
Ora,
a denúncia anônima não é aceita como prova; nem mesmo pode fundamentar o
desencadeamento da ação fiscal.
Assim
sendo, a denúncia anônima somente poderá ser tomada como ponto de partida da
investigação, mas devendo ser confirmada por outros indícios colhidos em
investigação preliminar, antes de iniciado o procedimento fiscalizatório.
Os
servidores fiscais devem tomar as cautelas necessárias, para que a ação fiscalizadora,
baseada em denúncia anônima, não venha a ferir direitos constitucionais do
contribuinte, especialmente a dignidade da pessoa humana, a privacidade e a
defesa da honra, do bom nome e da imagem do cidadão e muito menos venha a
consubstanciar-se em resultado eficaz de vindita de
particular.
Getri, em Florianópolis, 15 de fevereiro de 2012.
Velocino Pacheco Filho Lintney Nazareno da Veiga
AFRE – mat. 184244-7 Gerente de Tributação