ESTADO DE SANTA CATARINA

SECRETARIA DE ESTADO DA FAZENDA

DIRETORIA DE ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA

GERÊNCIA DE TRIBUTAÇÃO

 

 

OBSERVAÇÃO: A presente Nota Técnica é anterior ao REsp 1.320.825 RJ, rel. Min. Gurgel de Faria, julgado pela Primeira Seção do STJ, conforme o rito dos recursos repetitivos, em 10-8-2016, pub. no DJe de 17-8-2016:

EMENTA. TRIBUTÁRIO.   RECURSO ESPECIAL   REPETITIVO.   IPVA.   DECADÊNCIA. LANÇAMENTO DE OFÍCIO. REGULARIDADE. PRESCRIÇÃO. PARÂMETROS.

1. O Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) é lançado de ofício no início de cada exercício (art. 142 do CTN) e constituído definitivamente com a cientificação do contribuinte para o recolhimento da exação, a qual pode ser realizada por qualquer meio idôneo, como o envio de carnê ou a publicação de calendário de pagamento, com instruções para a sua efetivação.

2. Reconhecida a regular constituição do crédito tributário, não há mais que falar em prazo decadencial, mas sim em prescricional, cuja contagem deve se iniciar no dia seguinte à data do vencimento para o pagamento da exação, porquanto antes desse momento o crédito não é exigível do contribuinte.

3. Para o fim preconizado no art. 1.039 do CPC/2015, firma-se a seguinte tese: "A notificação do contribuinte para o recolhimento do IPVA perfectibiliza a constituição definitiva do crédito tributário, iniciando-se o prazo prescricional para a execução fiscal no dia seguinte à data estipulada para o vencimento da exação."

4.  Recurso especial parcialmente provido. Julgamento proferido pelo rito dos recursos repetitivos (art. 1.039 do CPC/2015).

O acórdão referido tornou superada a NT 1/2012, no que se refere à caracterização do lançamento do IPVA e à contagem dos prazos de decadência e prescrição.

 

Getri, em Florianópolis, 31 de julho de 2017

 

           Velocino Pacheco Filho                                           Amery Moisés Nadir Júnior

           AFRE – mat. 184244-7                                                Gerente de Tributação

 

 

 

NOTA TÉCNICA N° 001/2012

 

IPVA: lançamento de ofício: extinção do crédito tributário pela prescrição do direito subjetivo da Fazenda Pública.

 

1. Colocação do problema:

Recentes decisões judiciais têm declarado a extinção de créditos tributários (IPVA), já em fase de execução fiscal, por considerar prescrito o direito subjetivo da Fazenda Pública. O fundamento de tais decisões, levantado pelos executados em embargos à execução ou em exceção de pré-executividade, é do seguinte teor: “como se trata de IPVA, imposto com lançamento direto e vencimento anual previsto em lei conforme o final da placa do veículo, o termo inicial da prescrição deve corresponder à data deste vencimento em cada exercício”. O argumento invoca como fundamento jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. 

Com efeito, a Colenda Primeira Turma do STJ, no julgamento do Recurso Especial 1.069.657 PR, em que foi Relator o Min. Benedito Gonçalves (DJe  30/3/2009), decidiu que:

“2. Na esteira da jurisprudência dessa Corte, o IPVA é tributo sujeito a lançamento de ofício. E, como tal, o termo a quo para a contagem do prazo prescricional para sua cobrança é a data da notificação para o pagamento. Precedentes”.

“3. Na hipótese, o Tribunal a quo assentou que os créditos tributários cuja prescrição se reconheceu foram definitivamente constituídos respectivamente em junho de 1.996 e 1.997, porquanto a lei local prevê épocas diferenciadas para o pagamento do IPVA, conforme final da placa do veículo. Ainda segundo o acórdão recorrido, o veículo (Monza 87) tem placa com final 4 (ACB-5194), de sorte que o vencimento do IPVA dá-se até o final do mês de junho de cada ano, data a partir da qual começa a fluir o prazo prescricional de 5 (cinco) anos para a propositura da ação de cobrança”.

Não divergiu desse entendimento a Colenda Segunda Turma (AgRg no AgIn 1.399.575; DJe 4/11/2011):

“1. Nos tributos sujeitos a lançamento de ofício, como no caso do IPVA e IPTU, a constituição do crédito tributário perfectibiliza-se com a notificação ao sujeito passivo, iniciando, a partir desta, o termo a quo para a contagem do prazo prescricional quinquenal para a execução fiscal, nos termos do art. 174 do Código Tributário Nacional”.

A decisão invocou ainda a aplicação da Súmula 83/STJ: "Não se conhece do recurso especial pela divergência, quando a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido da decisão recorrida".

Ambas as decisões consideram, como marco inicial para a fluência do prazo prescricional, a notificação do lançamento (constituição do crédito tributário) ao sujeito passivo, o que está de acordo com a dicção do art. 174 do CTN: “a ação para cobrança do crédito tributário prescreve em 5 (cinco) anos, contados da data de sua constituição definitiva”.

No entanto, as decisões do STJ consideram o crédito tributário constituído quando encerrado o prazo para recolhimento do tributo. Em tal hipótese, ocorreria a prescrição do crédito tributário antes que o Fisco tenha podido efetuar o lançamento. Contudo, como será esclarecido mais adiante, na situação fática a que se referem os acórdãos citados, a Fazenda Pública, com efeito, havia intimado os sujeitos passivos ao recolhimento do tributo. Essa circunstância deve ser levada em conta pelo juiz, que não deve aplicar mecanicamente o referido critério a todas as situações, sob pena de causar considerável prejuízo ao Erário, tanto estadual como municipal.

 

2. Decadência e prescrição e a unidade do sistema jurídico:

Paulo de Barros Carvalho considera a unidade do sistema jurídico “o mais transcendental entre os princípios fundamentais do direito” (Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, 22ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 474):

“Com efeito, a ordenação jurídica é una e indecomponível. Seus elementos – as unidades normativas – se acham irremediavelmente entrelaçadas pelos vínculos de hierarquia e pelas relações de coordenação, de tal modo que tentar conhecer regras jurídicas isoladas, como se prescindissem da totalidade do conjunto, seria ignorá-lo, enquanto sistema de proposições prescritivas”.

A unidade do sistema jurídico também é enfatizada por Heleno Tôrres (Direito Tributário e Direito Privado: autonomia privada: simulação: elusão tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 39):

“O direito positivo é parte de um sistema social, e dentro do sistema social global cumpre uma função específica: a normatividade dessa estrutura, enquanto produto objetivo da cultura humana e fixado numa estrutura linguística. Por isso, o direito positivo é sistema, porque não se trata de mero agregado de proposições normativas, simples justaposição de preceitos, caótico feixe de textos prescritivos. A homogeneidade estrutural do direito deve ser reconhecida na forma de um sistema de proposições prescritivas válidas, determinando-se por uma unidade e unicidade própria”.

A essa altura, cabe perguntar: os institutos da decadência e da prescrição no direito tributário têm o mesmo significado de decadência e prescrição no direito privado? ou se trata de institutos distintos? Se forem institutos distintos, não caberia aplicação ao direito tributário de regras do Código Civil relativas a contagem de prazos?

Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial 1.002.932 SP (2009), tratando do prazo para pleitear repetição do indébito, decidiu que antes da entrada em vigor da Lei Complementar 118/2005 o prazo do art. 168 do CTN seria contado da homologação tácita do procedimento do sujeito passivo, condicionado, contudo, à regra do art. 2.028 do novo Código Civil: “serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada”. A aplicação de regras do direito civil à decadência e prescrição tributárias faz supor que têm o mesmo conteúdo no direito tributário e no direito privado.

Por outro lado, no caso de se tratar do mesmo instituto, o prazo para proceder ao lançamento do tributo será de decadência se e somente se o lançamento for um direito potestativo da Fazenda Pública.

Ora, o lançamento não é um direito potestativo, já que a Fazenda Pública não pode dele dispor. Não há opção entre lançar e não lançar. Pelo contrário, a teor do disposto no parágrafo único do art. 142 do CTN, “a atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional”.

No magistério de Hugo de Brito Machado (Mandado de Segurança em Matéria Tributária, 5ª ed. São Paulo: Dialética, 2003, pg. 233.), “tendo conhecimento de um fato tributável, a autoridade administrativa não pode deixar de fazer o lançamento correspondente. Assim, editada uma lei criando ou aumentando tributo, desde que ocorrida a situação de fato sobre a qual incide, gerando a possibilidade de sua cobrança, desde logo a autoridade está obrigada a exigir o tributo, e a impor penalidades aos inadimplentes”.

Enfim, arremata Paulo de Barros Carvalho (Curso de Direito Tributário. 22ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 537):

“O ato jurídico de lançamento é vinculado e obrigatório, sob pena de responsabilidade funcional (CTN, art. 142, parágrafo único). Trata-se, na verdade, de um dever do Estado, enquanto entidade tributante, que não se confunde com o direito subjetivo de exigir a prestação, não podendo ser considerado, também, como pretende importante segmento doutrinário, um direito potestativo”.

 

3. Decadência e prescrição no direito privado:

Leciona Humberto Theodoro Júnior (Comentários ao Novo Código Civil  Sálvio de Figueiredo (coord.), Rio de Janeiro: Forense, 2005) que o Código Civil de 1916 não fazia muita distinção entre decadência e prescrição: “a total ausência de referência no Código antigo ao fenômeno da decadência fez com que a doutrina não tivesse parâmetro algum no direito positivo para construir a teoria delimitadora em relação à prescrição”. Essa deficiência foi suprida pelo novo Código que define a prescrição como perda da “pretensão” a um direito subjetivo amparado pela ação: “violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206” (CC, art. 189).

Já o prazo de decadência refere-se aos direitos desprovidos de pretensão ou direitos potestativos. Entende-se por direito potestativo (ou direito formativo ou facultativo) a faculdade do sujeito de direito de provocar a alteração de uma situação jurídica que pode ser exercida judicialmente ou extra-judicialmente. O prazo decadencial faz parte do próprio efeito potestativo – nasce junto com ele como um de seus elementos formativos. No escólio de Humberto Theodoro Júnior (Idem, pg. 355):

“Embora sejam múltiplos e meio confusos os fundamentos da prescrição, no caso da decadência tudo se explica com um único argumento: é a necessidade de certeza jurídica que determina a subordinação de certos direitos facultativos ao exercício obrigatório dentro de determinado prazo, para que, a seu término, se tenha como firme e inalteravelmente definida a situação jurídica das partes. É de interesse público que as situações jurídicas submetidas a esse tipo de prazo fiquem definidas de uma vez para sempre, com o seu transcurso”.

Estariam, assim, submetidos a prazos de decadência, o direito de o doador revogar a doação, no caso de ingratidão do donatário ou o exercício do direito de compra pelo condômino. Os direitos potestativos são exercidos pelo seu titular, sem que o sujeito passivo possa se opor. Por outro lado, o titular pode escolher não exercer o direito: o doador pode perdoar a ingratidão do donatário ou o condômino não exercer o seu direito de compra. Por isso que os direitos potestativos não são providos de pretensão.

A seu turno, Marçal Justem Filho (Curso de Direito Administrativo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, pg. 976) leciona que “a prescrição envolve o direito de exigir a tutela juriscidional” e que o “prazo prescricional se inicia na data em que uma pretensão for resistida ou não-satisfeita (princípio da actio nata)”. Nessa perspectiva, seria o simples não-pagamento do tributo na data de vencimento – mero cumprimento de dever legal – constituiria “resistência à pretensão”, dando início à contagem do prazo prescricional? Mesmo que a exigência não tenha sido formalizada pelas autoridades fazendárias?

 

4. Decadência e prescrição no direito tributário:

Contudo, apesar do propalado ideal da unidade do sistema jurídico, decadência e prescrição no direito tributário não tem a mesma significação que no direito privado. É o que comenta Eurico Marcos Diniz de Santi (Decadência e Prescrição no Direito Tributário. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 146): “a decadência e a prescrição do direito do Fisco não comportam a mesma amplitude de dissenção nem a mesma complexidade que verificamos no direito privado”.

De fato, dispõe o art. 173 do CTN que “o direito da Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após 5 (cinco) anos contados (i) do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado; ou (ii) da data em que se tornar definitiva a decisão que houver anulado, por vício formal, o lançamento anteriormente efetuado”.

Porém, no caso de lançamento por homologação, “que ocorre quanto aos tributos cuja legislação atribua ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa”, conta-se o prazo da ocorrência do fato gerador (art. 150, § 4°), ao final do qual, “sem que a Fazenda Pública se tenha pronunciado, considera-se homologado o lançamento e definitivamente extinto o crédito tributário, salvo se comprovada a ocorrência de dolo, fraude ou simulação”.

Já a ação para cobrança do crédito tributário devidamente constituído, é também de cinco anos, mas contados de sua constituição definitiva. Entende-se como definitivamente constituído o crédito tributário, no caso de impugnação do ato administrativo de lançamento, quando não couber mais recurso em sede de contencioso administrativo tributário. Nesse sentido é a jurisprudência assente do Superior Tribunal de Justiça, como é exemplificativa a decisão da Primeira Turma desse sodalício, no julgamento do REsp 664.349 SP (DJU 1, de 6.9.2007, p. 196; RDDT 146: 238):

“2. Enquanto há pendência de recurso administrativo, não correm os prazos prescricional e decadencial. Somente a partir da data em que o contribuinte é notificado do resultado do recurso é que tem início a contagem do prazo de prescrição previsto no art. 174 do CTN. Destarte, não há falar em prescrição intercorrente em sede de processo administrativo fiscal”.

Temos assim, que decadência e prescrição sucedem-se no tempo: a decadência, relativamente à constituição do crédito tributário; a prescrição, quanto à correspondente ação de execução. “A decadência opera na fase da constituição administrativa do crédito; a prescrição, no momento do exercício do direito de ação” (Santi, id. p. 217).

A referência do legislador à natureza constitutiva do lançamento tem, entretanto, suscitado críticas, por distinguir entre “obrigação” e “crédito” tributários: do ponto de vista da teoria das obrigações, a distinção não procederia, já que o crédito seria a própria obrigação, vista como o direito subjetivo da Fazenda Pública de exigir o cumprimento da prestação. Portanto, ele nasce juntamente com a obrigação e não em momento distinto. Assim sendo, não faria sentido entender o lançamento como constitutivo do crédito tributário. Pelo contrário, seria meramente declaratório da existência do crédito.

Desse entendimento, é exemplificativa a posição de Fábio Fanuchi (Curso de Direito Tributário, 4ª ed. Vol. I, São Paulo: IBET; Resenha Tributária, 1986, pg. 263): “... o direito à cobrança de tributos e penalidades nasce, para o sujeito ativo, pela ocorrência da situação descrita em lei como fato gerador da obrigação tributária e não pelo ato que estrutura o crédito que lhe é correspondente. O ato que faz aparecer o crédito é um ato simplesmente declaratório da existência daquele direito”.

Entendimento diverso encontramos em Paulo de Barros Carvalho que reconhece o caráter constitutivo do lançamento, mas em outro sentido: apenas com o lançamento, o fato jurídico tributário é introduzido no direito, mediante sua descrição em linguagem competente. Esse autor, em decorrência da aplicação ao estudo do direito da teoria da linguagem, considera que a ocorrência concreta (evento) de situação correspondente à referida no antecedente da norma geral e abstrata somente se torna “fato jurídico”, com a sua descrição, pela autoridade fazendária, passando a ocupar o antecedente de norma individual e concreta. Nessa perspectiva, o conseqüente da norma editada pela autoridade (lançamento) “constitui” um vínculo de cunho obrigacional entre o Estado (sujeito ativo) e o contribuinte (sujeito passivo) que tem por objeto a satisfação da obrigação tributária.

Com efeito, leciona o autor referido que “todos os fatos são construções de linguagem, e, como tanto, são representações metafóricas do próprio evento” (Curso de direito tributário, 22ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 301). Isto porque “o direito é linguagem própria compositiva de uma realidade jurídica” (id. p. 302).

“O relato do acontecimento pretérito é exatamente o modo como se constitui o fato, como essa entidade aparece e é recebida no recinto do direito, o que nos autoriza a proclamá-lo como constitutivo do evento que, sem esse relato, quedaria à margem do universo jurídico. Por outros torneios, o enunciado projeta-se para o passado, recolhe o evento e, ao descrevê-lo, constitui-se como fato jurídico tributário” (id. p. 474).

Por conseguinte, “a natureza da norma individual e concreta, veiculada pelo ato de lançamento tributário, ou pelo ato produzido pelo sujeito passivo para apurar o seu débito, nos casos estabelecidos em lei, assumirá a feição significativa de providência constitutiva de direitos e deveres subjetivos” (id. p. 476).

O lançamento é providência indispensável para que possa ser ajuizada a ação de execução (pretensão impositiva da Fazenda Pública) e, portanto, para que se inicie o prazo prescricional cujo termo inicial é a própria constituição do crédito tributário. Conforme Eurico de Santi (op. cit. p. 218), “na hipótese da regra de prescrição do direito do Fisco, o fator tempo figura em conjunção com a conduta omissiva da Fazenda Pública. E só há omissão, se houver a possibilidade jurídica da exigibilidade do crédito: não basta que o crédito esteja instalado no sistema com notificação regular, líquido e certo, requer-se também que seja exigível. Sem exigibilidade não há omissão, tão somente fluxo de tempo”.

Acrescenta Paulo de Barros Carvalho que “instalado o vínculo jurídico tributário e sobrevindo o fato decadencial, a decadência faz desaparecer o direito subjetivo de exigir a prestação tributária e, em contrapartida, também se extingue o débito do sujeito passivo, desintegrando-se o laço obrigacional” (p. 539). Prossegue o mesmo autor:

“Com o lançamento eficaz, quer dizer, adequadamente notificado ao sujeito passivo, abre-se à Fazenda Pública o prazo de cinco anos para que ingresse em juízo com a ação de cobrança (ação de execução). Fluindo esse período de tempo sem que o titular do direito subjetivo deduza sua pretensão pelo instrumento processual próprio, dar-se-á o fato jurídico da prescrição. A contagem do prazo tem como ponto de partida a data da constituição definitiva do crédito, expressão que o legislador utiliza para referir-se ao ato de lançamento regularmente comunicado (pela notificação) ao devedor” (p. 540).

Temos então que, com a ocorrência do fato gerador, inaugura-se o prazo para a Fazenda Pública constituir o crédito tributário, pela atividade administrativa de lançamento. Esse prazo é considerado de decadência, embora o lançamento não se caracterize como um direito “potestativo” da Fazenda Pública.

Constituído o crédito tributário, com a competente notificação ao sujeito passivo, não há mais que se falar em prazo de decadência (ressalvada a hipótese do inciso II do art. 173 do CTN). A notificação dá conhecimento ao sujeito passivo do tributo que lhe é exigido pelo Fisco, o valor da prestação, seus acréscimos (multa, juros e correção monetária), seu fundamento legal e do prazo para sua liquidação.

A constituição definitiva do crédito tributário, mediante notificação ao sujeito passivo, ou, no caso de impugnação administrativa, da decisão de que não caiba mais recurso, constitui o termo inicial do prazo para a Fazenda pleitear em juízo a execução do tributo inadimplido.

Como visto, os conceitos de decadência e prescrição no direito tributário, além de bem mais simplificados, divergem dos conceitos análogos no direito privado. A decadência está associada ao lançamento (ainda que este não seja um direito potestativo ou formativo da Fazenda), enquanto a prescrição refere-se ao ajuizamento da ação de execução do crédito tributário. Ambas são consideradas causas extintivas da exigibilidade do crédito tributário, a teor do art. 156, V, do CTN.

 

5. Prazo de decadência ou de prescrição?

Informa Brandão Machado (Decadência e Prescrição no Direito Tributário: notas a um acórdão do Supremo Tribunal Federal. In: Direito Tributário Atual, vol. 6, São Paulo: IBDT: Resenha Tributária, 1986, p. 1316) que a eficácia constitutiva do lançamento dominou na doutrina alemã até a promulgação do Código Tributário, quando foi abandonada. Então, por influência de Eno Becker, o direito tributário alemão passou a adotar conceitos de decadência e prescrição mais próximos do direito privado.

“Aduzia Becker” diz o citado autor “que o lançamento constituía, na verdade, uma interrupção do prazo de prescrição, uma vez que o lançamento consubstanciava uma cobrança” (p. 1359), pois “o direito de lançar não poderia estar sujeito à decadência. Se o crédito nasce com a ocorrência do fato gerador, e com ele a pretensão, o direito de cobrar deveria coerentemente estar sujeito à prescrição” (p. 1360).

Essa construção teórica aproxima os conceitos de decadência e prescrição no direito tributário dos seus equivalentes no direito privado e, por conseguinte, possibilita a realização do tão desejado ideal da unidade do sistema jurídico.

Em síntese, com abstração da doutrina majoritária e mesmo da dicção dos arts. 173 e 174 do CTN: se o lançamento e constituição do crédito tributário não é um direito potestativo da Fazenda Pública, então o prazo que flui, tomando como referência a ocorrência do fato gerador do tributo não deveria ser de decadência, mas de prescrição. O lançamento, regulamente notificado ao sujeito passivo, dando conhecimento do tributo exigido, caracterizaria a pretensão impositiva da Fazenda Pública ao crédito tributário e interromperia a fluência do prazo prescricional que recomeçaria, a partir de então, a correr novamente. Então, devemos considerar que “há uma prescrição para a pretensão abstrata, que flui antes do lançamento; e outra prescrição para a pretensão concretizada” (id. p. 1369).

Brandão Machado, louvando-se em doutrina de Pontes de Miranda, define pretensão como “a posição subjetiva de poder exigir de outrem alguma prestação” (op. cit. p. 1362). “A pretensão não se confunde com o direito, nem com a ação judicial; é sempre contida no direito, ou se refere a elemento do conteúdo do direito”. Prossegue o mesmo autor, dizendo que:

“O que caracteriza a pretensão é a exigibilidade. Exigir a prestação é exercer pretensão. exatamente por isso é que lançar imposto é exercer pretensão, e não exercer um direito formativo, [...] Exigir não é só exigir por meio de ação judicial, pois há pretensões inacionáveis e pretensões ainda não munidas de ação. A exigibilidade pode dar-se através de órgão do Estado, de pessoa a pessoa, ou pelo ato administrativo ou pela ação judicial. Assim como há direitos com ação, mas desprovidos de pretensão, como são os direitos formativos, assim também há pretensões sem ação e pretensões a que não tenha nascido ação. [...] Pode extinguir-se a pretensão, sem que se extinga o direito, como acontece de regra com a prescrição, que extingue não o direito, mas a pretensão” (id. p. 1363).

Assim, a pretensão tributária nasceria “no mesmo instante em que surge a obrigação tributária, independentemente da quantificação do crédito, que ocorre por ocasião do seu exercício através do ato administrativo de lançamento” (id. p. 1364).

Com efeito, dispõe o Código Tributário Alemão, de 1976 (Novo Código Tributário Alemão, Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: IBDT, 1978), que o momento da ocorrência do fato ao qual a lei vincula o dever da prestação dá nascimento à pretensão tributária (§ 38) e que o prazo para efetivar o lançamento é de prescrição (§ 169).

O direito tributário brasileiro, entretanto, não acompanhou essa evolução legislativa e doutrinária, de modo que decadência e prescrição permanecem com sentidos diversos no direito tributário e no direito privado. Por esse motivo não cabe a aplicação de disposições do direito civil sobre decadência e prescrição no direito tributário.

 

6. Modalidades de lançamento:

O CTN prevê três modalidades de lançamento, a saber: (i) direto ou de ofício; (ii) misto ou por declaração; e (iii) autolançamento ou por homologação. No lançamento direto, a autoridade administrativa constitui o crédito tributário mediante atos de ofício, sem participação do contribuinte. Já no lançamento por declaração, a autoridade administrativa efetua o lançamento com base nos dados declarados pelo contribuinte. Por fim, no lançamento por homologação, o contribuinte apura e declara o valor do tributo devido e antecipa o seu pagamento. Nesse último caso, o pagamento antecipado extingue o crédito tributário, sob condição resolutória de ulterior homologação do procedimento pela autoridade administrativa.

No caso do lançamento por homologação, considera-se que a declaração do contribuinte, informando a Fazenda do montante do tributo devido constitui o crédito tributário e inaugura a fluência do prazo de prescrição, conforme jurisprudência sedimentada do Superior Tribunal de Justiça: “o instituto do autolançamento do tributo, a revelar, em última análise, a confissão do contribuinte, dispensa a notificação fiscal para ter-se a exigibilidade” (STF, Primeira Turma, AgRg no AgIn 539.891-3; RDDT 148: 188).

Desse modo, “conta-se da data da entrega do documento de formalização do crédito tributário pelo próprio contribuinte (DCTF, GIA etc.) o prazo qüinqüenal para o Fisco acioná-lo judicialmente, nos casos dos tributos sujeitos a lançamento por homologação” (STJ, Primeira Turma, EDcl nos EDcl n AgRg no REsp 1.124.339 PA; RDDT 188: 231, 2011). A matéria foi objeto da Súmula 436 do STJ: “A entrega de declaração pelo contribuinte reconhecendo débito fiscal constitui o crédito tributário, dispensada qualquer outra providência por parte do fisco”.

Esse entendimento foi incorporado à legislação catarinense, no § 1° do art. 62 da Lei 5.983, de 27 de novembro de 1981: “O imposto apurado, e declarado pelo sujeito passivo por determinação da legislação, não pago no prazo nela estabelecido, inclusive a respectiva multa, juros de mora e demais acréscimos legais, poderá ser automaticamente inscrito em dívida ativa, independente de notificação ao devedor”.

Considera-se definitivamente constituído o crédito tributário, para os fins de aplicação do art. 174, como marco inicial da contagem do prazo de prescrição do direito da Fazenda exigir o crédito tributário em juízo: (i) no caso de lançamento por homologação, a declaração, pelo contribuinte, do valor do tributo devido e (ii) no caso de lançamento direto, a notificação (ciente) ao contribuinte da atividade da Fazenda que constituiu o crédito tributário. A ocorrência do fato (evento) do mundo real constitui-se em fato jurídico-tributário, no primeiro caso, pelo autolançamento, e no segundo, pelo ato administrativo de lançamento.

Porém, havendo impugnação do lançamento pelo contribuinte, considera-se que o lançamento somente estará definitivamente constituído quando não mais couber discussão na esfera administrativa. Então somente da decisão administrativa começará a fluir o prazo de prescrição.

Afigura-se incoerente pretender que seja constituído o crédito tributário no momento do vencimento da obrigação tributária, sem que o respectivo fato gerador tenha sido descrito em linguagem jurídica competente, ou seja, sem que o evento tenha sido constituído em fato jurídico. Enquanto a Fazenda Pública não notificar o sujeito passivo do lançamento, intimando-o a recolher o tributo, não pode iniciar o prazo prescricional.

Está perfeitamente correto o entendimento do Tribunal de que “a constituição do crédito tributário perfectibiliza-se com a notificação ao sujeito passivo, iniciando, a partir desta, o termo a quo para a contagem do prazo prescricional qüinqüenal para a execução fiscal, nos termos do art. 174 do Código Tributário Nacional”. Contudo, não podemos admitir que “a notificação ao sujeito passivo” se dê na data de vencimento da obrigação.

Afinal, o lançamento é um ato administrativo – ou um “procedimento administrativo”, para usar a linguagem do art. 142 do CTN – que se aperfeiçoa com sua cientificação ao sujeito passivo. Não existe “lançamento tácito”, como parece supor a decisão que faz contar o termo a quo da contagem do prazo de prescrição da data de vencimento da obrigação, prevista na legislação.

Apenas com o descumprimento do dever legal de adimplir voluntariamente a obrigação na data prevista na legislação é que a Fazenda Pública irá constituir ex officio o crédito tributário, mediante ato formal, intimando o contribuinte a recolher o tributo devido. Mas, como se depreende do voto do relator, a questão não foi analisada pelo Tribunal, por falta de pré-questionamento.

Ora, dispõe o art. 174 do CTN que “a ação para cobrança do crédito tributário prescreve em 5 (cinco) anos, contados da data da sua constituição definitiva”. O lançamento (constituição do crédito tributário) manifesta a pretensão da Fazenda Pública à cobrança do tributo, condição para que se inaugure o prazo prescricional (princípio da actio nata).

Resta saber em que momento se considera definitivamente constituído o crédito tributário: quando o sujeito passivo é cientificado do lançamento ou, como entendeu o digno magistrado, na data de vencimento da obrigação, prevista na legislação tributária?

O crédito tributário, diz o art. 139 do CTN, “decorre da obrigação principal e tem a mesma natureza desta”. A obrigação principal (art. 113, § 1°), por sua vez,  “surge com o fato gerador, tem por objeto o pagamento do tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente como crédito dela decorrente”.

 A norma tributária contida no texto do direito posto, geral (dirigida a todos) e abstrata (refere-se à previsão hipotética de um fato), associa ao fato gerador (descrito no antecedente endonormativo) uma relação jurídica entre a Fazenda e o contribuinte (obrigação tributária). Porém, para que nasça a obrigação tributária, é preciso que ocorra concretamente o fato gerador. Segundo Dino Jarach (O Fato Imponível: teoria geral do direito tributário substantivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 87), “a obrigação do contribuinte e da pretensão correlativa do fisco se fazem depender da ocorrência de um fato jurídico, o determinado pressuposto legal do tributo, o fato imponível”.

Contudo, o simples evento (fato-do-mundo) não é suficiente para que nasça a obrigação tributária: é preciso que se torne fato jurídico para que irradie os efeitos esperados. Na construção doutrinária de Paulo de Barros Carvalho (Direito Tributário, Linguagem e Método, São Paulo: Noeses, 2008), é preciso que o evento seja descrito “em linguagem competente” para que se torne “fato jurídico”.

A linguagem jurídica competente constrói uma norma individual (destinada a um só contribuinte) e concreta (refere-se a fato concretamente ocorrido), cujo antecedente contém o reconhecimento da ocorrência do fato gerador e cujo conseqüente constitui o crédito tributário, como direito subjetivo da Fazenda de exigir do contribuinte o pagamento do tributo. À atividade de constituir o crédito tributário, o art. 142 do CTN denomina de “lançamento”.

Conforme Eurico Marcos Diniz de Santi (Decadência e Prescrição no Direito Tributário. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 198):

“Do mesmo modo que a autoridade administrativa se vê obrigada a efetuar o lançamento tributário, a legislação tributária prescreve ao sujeito passivo o dever de constituir o crédito tributário para efeito de realizar o pagamento antecipado e viabilizar, ao Fisco, o exercício de sua atividade controladora. Não basta, nesta hipótese, que o particular pague, é essencial que se constitua o crédito, identificando-se o sujeito ativo, o sujeito passivo e o fato jurídico que lhe serve de fundamento. Sem esses dados, objetivados documentalmente – mediante os suportes eleitos pelas regras que disciplinam sua formalização (livros de controle, guias de arrecadação etc) – o crédito tributário, juridicamente, não existe. É, pois, por intermédio desse ato do particular que se formaliza em linguagem prescritiva o ‘crédito tributário’ nos chamados ‘lançamentos por homologação’”.

Para que o tributo se torne exigível é imprescindível a sua constituição, pelo Fisco, no caso dos tributos sujeitos ao lançamento direto, ou pelo próprio contribuinte, no caso de tributos sujeitos ao autolaçamento (lançamento por homologação). Somente com a constituição definitiva do crédito tributário é que passa a fluir o prazo de prescrição. Não se pode falar em prescrição, sem que o tributo tenha sido previamente constituído.

Por outro lado, o contribuinte pode adimplir a sua obrigação, independentemente de lançamento, como mero cumprimento de dever legal. Não se trata de lançamento por homologação ou de autolançamento. Não há um ato de constituição do crédito tributário pelo Fisco (lançamento) ou pelo contribuinte (autolançamento).

Haverá, no caso, lançamento de ofício, no caso de inadimplemento da obrigação pelo contribuinte, no prazo regulamentar.

 

7. Constituição do crédito tributário (IPVA):

 O fato gerador do imposto, conforme dispõe a Lei estadual 7.543, de 30 de dezembro de 1988, é descrito como “a propriedade, plena ou não, de veículos automotores de qualquer espécie”.

Estamos, portanto, diante do que certa doutrina tem descrito como “fato gerador continuado” que é definido por Orozimbo Ribeiro Paiva (Elemento Temporal do Fato Gerador da Obrigação Tributária. São Paulo: Resenha Tributária, 1977, p. 12-13) nos seguintes termos: “será continuado o fato gerador quando a situação definida em lei como tal, após a sua ocorrência, permanece inalterada até o fim do período que, marcado na lei, lhe corresponda”.

O art. 2°, § 1°, III, da mesma Lei diz que “considera-se ocorrido o fato gerador no dia 1° de janeiro de cada ano, em relação a veículos adquiridos ou desembaraçados em anos anteriores”. Pode ocorrer que nessa data o antigo contribuinte não detenha mais a propriedade do veículo: (i) por tê-lo vendido, (ii) porque foi furtado, (iii) porque foi sinistrado com perda total etc. Somente haverá o dever de recolher o tributo nas datas previstas na legislação (conforme final de placa) se e somente se for proprietário do veículo.

Mas, se ainda for o proprietário do veículo e não tiver recolhido o tributo voluntariamente no prazo regulamentar, a contagem do prazo para a Fazenda Pública constituir o crédito tributário, nos termos do art. 173, I, do CTN, inicia no dia 1° de janeiro do ano subseqüente.

Prevalecendo a tese adotada pela sentença, o prazo prescricional (para ajuizar a ação de cobrança do crédito tributário) começa a fluir antes mesmo de iniciar o prazo de decadência (para constituir o crédito tributário). Como é possível falar-se em prescrição de um direito que sequer existe?

Diz o art. 4° da Lei 7.543/88 que “o imposto será devido anualmente e recolhido nos prazos fixados em regulamento, sendo facultado ao contribuinte liquidar seu débito a partir da data da ocorrência do fato gerador”.

Podemos, então, distinguir a seguinte seqüência na positivação do direito:

(i) a legislação determina datas de vencimento da obrigação tributária (IPVA), conforme final da placa do veículo;

(ii) o proprietário do veículo (contribuinte) providencia o pagamento do IPVA, utilizando tabela de valores de mercado divulgada pela Fazenda Estadual (considerando que essa tabela integra o conseqüente da norma geral e abstrata) – à evidência, se não for mais proprietário, também não será mais contribuinte e, portanto, estará desobrigado de efetuar qualquer pagamento;

(iii) ou, pelo contrário, o proprietário/contribuinte não recolhe voluntária e tempestivamente o IPVA, constituindo-se em mora;

(iv) nessa última hipótese, a partir de 1° de janeiro do ano seguinte (CTN, art. 173, I), passa a correr o prazo decadencial para a Fazenda Estadual constituir o crédito tributário;

(v) tomando conhecimento da inadimplência, a Fazenda Estadual constitui o crédito tributário (lançamento), na forma do art. 142 do CTN, dando ciência do ato ao contribuinte (notificação fiscal);

(vi) com a ciência do lançamento ao contribuinte cessa a fluência do prazo decadencial, pelo exercício do poder-dever de constituir de ofício o crédito tributário;

(vii) o contribuinte, caso não se conforme com o ato impositivo, pode impugnar o lançamento, mediante interposição de reclamação junto aos órgãos judicantes administrativos – enquanto durar o contencioso administrativo tributário não corre prazo de decadência, nem de prescrição (conforme mansa e pacífica jurisprudência dos tribunais superiores);

(viii) sobrevindo decisão administrativa contrária ao contribuinte, da qual não caiba mais recurso (na esfera administrativa), considera-se definitivamente constituído o crédito tributário, passando, então, a correr o prazo de prescrição.

 

8. Análise da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:

A declaração de extinção do crédito tributário, por ter ocorrido a prescrição da pretensão impositiva da Fazenda Pública, escora-se em jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que considera o “vencimento anual previsto em lei conforme o final da placa do veículo” como termo inicial da contagem do prazo prescricional do IPVA.

Examinaremos a pertinência do argumento de dois pontos de vista: o primeiro no que se refere às cautelas que devem ser tomadas nas decisões com base em precedentes, em nome da preservação da segurança jurídica; o segundo diz respeito à justificação das decisões judiciais, da perspectiva da teoria da argumentação jurídica.

 

8.1. Decisões judiciais com base em precedentes:

Assiste-se, neste início de século, a crescente importância dos tribunais superiores, em sua tarefa de uniformizar a jurisprudência. Observa-se mesmo uma aproximação com as práticas da common law, inclusive a utilização de precedentes para fundamentar decisões. Essa nova atitude foi, em grande parte, induzida pela introdução de institutos como a súmula vinculante e a repercussão geral.

O cuidado que se deve ter, até em homenagem ao princípio da segurança jurídica, é verificar se o caso julgado guarda a necessária semelhança com o caso tomado como precedente. Trata-se de garantir que casos semelhantes recebam o mesmo tratamento e casos dessemelhantes recebam diverso tratamento.

O juiz não deve utilizar o precedente como um “leito de Procusto” em que são ignoradas diferenças fundamentais do caso julgado. A pesquisa das diferenças determinantes revela-se importante técnica no uso de precedentes judiciais. Nesse sentido, Saul Tourinho Leal, em artigo recente (A Técnica do Distinguish em Matéria Tributária. RDDT 192: 132-139), contribui com o seguinte esclarecimento:

“Logo, para demonstrar a inadequação da aplicação do precedente ao caso concreto posteriormente apreciado pelas demais instâncias judiciais, o julgador pode se valer da praxe norte-americana de afastar o precedente firmado pela Suprema Corte no caso levado a julgamento, pelo fato de este ser diverso – fática ou juridicamente – daquele. Essa distinção é chamada de distinguish e goza hoje da força digna dos grandes institutos do processo constitucional da common law”.

Ora, a leitura da íntegra do acórdão, no julgamento do Recurso Especial 1.069.657 PR, nos revela que naquele caso, no primeiro mês de cada ano “o Estado envia aos contribuintes do IPVA os boletos (notificações/avisos) do lançamento”, circunstância esta não revelada na ementa do acórdão.

O envio de boletos aos contribuintes do IPVA, exigindo o pagamento do tributo, caracteriza precisamente a manifestação da pretensão impositiva da Fazenda Pública (notificação de lançamento), a partir da qual, efetivamente, inicia-se a contagem do prazo prescricional (princípio da actio nata). Nesse caso, não há que se falar em fluência de prazo de decadência. Não mereceria reparos, portanto, a decisão da Colenda Primeira Turma do STJ.

Com efeito, “a presunção de certeza, liquidez e exigibilidade da CDA é relativa, sendo que esta última pode ser afastada pelo reconhecimento da prescrição. In casu, consoante registrado no acórdão vergastado, a CDA que instrui a execução se refere a débitos de IPVA decorrentes dos exercícios dos anos de 1996 a 2000. Como a demanda foi proposta apenas em maio de 2003, concluiu-se pela prescrição dos tributos incidentes durante os exercícios de 1996 e 1997, por força do transcurso do qüinqüênio legal, ocorrido entre a data da constituição do crédito - que se dá com a notificação do contribuinte para o pagamento do tributo na data de seu vencimento - e a propositura da demanda. É sabido que a prescrição causa a extinção da pretensão pela inércia de seu titular, de modo que, uma vez transcorrido o prazo legal para a busca da realização do direito, este (ainda que esteja estampado em certidão da dívida ativa) passa a carecer de exigibilidade, que é condição da ação executiva”.

Mas, não é o caso da legislação catarinense. O Fisco de nosso Estado não envia “boletos” aos contribuintes para que efetuem o recolhimento do IPVA. A iniciativa do pagamento pertence toda aos proprietários de veículos automotores, que, antes de vencido o prazo previsto no regulamento do imposto (conforme final de placa), procuram as agências bancárias, que disponibilizam via sistema informatizado o valor do imposto devido (conforme tabela), efetuando o recolhimento do imposto. Estará, contudo, dispensado do procedimento, se outrem for o proprietário do veículo.

Mas se o proprietário de veículo automotor não providenciar o respectivo pagamento, passa a correr, para a Fazenda Pública, nos termos do art. 173, I, do CTN, o prazo decadencial para a constituição do crédito tributário. Nesse caso, o tributo constituído de ofício será acrescido de multa de 50% calculada sobre o valor corrigido do imposto, conforme art. 10, II, da Lei 7.543/88. Mas, é somente a partir da notificação do lançamento definitivo do tributo é que passa a correr o prazo prescricional para o ajuizamento da competente ação de execução; não antes.

O que não é admissível é a solução simplista de considerar como termo inicial do prazo prescricional a data prevista para o recolhimento do tributo, sem verificar se o Fisco manifestou a sua pretensão, mediante intimação para pagamento. O precedente somente se aplica se presentes as mesmas circunstâncias. No caso em tela, há uma diferença fundamental (distinguish): os contribuintes não foram notificados a recolher o IPVA, não se caracterizando, portanto, a constituição do crédito tributário.

O lançamento é um “procedimento administrativo”, privativo da autoridade fazendária (CTN, art. 142), não podendo ser presumido da previsão regulamentar de datas para o seu pagamento. Não existe, insistimos, “lançamento direto tácito”: é preciso a manifestação da autoridade fazendária exigindo o pagamento do tributo. Conforme prestigiado magistério de José Souto Maior Borges: (Lançamento Tributário, 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 189):

“Essa pretensão tributária afirma-se, portanto, mediante a notificação, sem a qual não é possível à Administração exigir o cumprimento da obrigação pelo sujeito passivo. E a conduta do sujeito passivo notificado, obrigado ao pagamento do tributo, corresponde, nesse sentido, ao conteúdo de um direito subjetivo de crédito do Fisco; é o objeto de uma pretensão”.

Por sua vez, o Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 1.399.575, da Colenda Segunda Turma, também não enfrenta a questão, apesar da Fazenda ter alegado que "...não tem aplicação o óbice da Súmula 83/STJ, por ser diverso o termo inicial do prazo prescricional na hipótese, considerando a existência do referido processo administrativo fiscal." A decisão segue a jurisprudência assente de que “a constituição do crédito tributário perfectibiliza-se com a notificação ao sujeito passivo, iniciando, a partir desta, o termo a quo para a contagem do prazo prescricional qüinqüenal para a execução fiscal”, como se nesse caso também os contribuintes teriam recebidos boletos exigindo o pagamento do tributo.

No entanto, registra o relator que “a tese de que a constituição definitiva do crédito tributário teria ocorrido somente após o término de processo administrativo fiscal não foi analisada na origem, o que impede a sua análise, por falta de prequestionamento, nos termos das Súmulas 282 e 356 do STF”.

 

8.2. Justificação das decisões judiciais:

Preconiza a moderna teoria da argumentação jurídica que não basta às decisões judiciais serem fundamentadas: exige-se que sejam também justificadas. O tradicional silogismo jurídico, em que a premissa maior é a norma contida na lei, a premissa menor, o fato, e a conclusão, a sentença, não garante que a solução dada pelo tribunal seja a melhor decisão possível ou que atenda aos ditames da justiça.

 Tathiane dos Santos Piscitelli (Quais conseqüências importam na justificação de uma decisão? In: VIII Congresso Nacional de Estudos Tributários: derivação e positivação do direito tributário. São Paulo: Noeses, 2011, p. 1133), citando doutrina de Neil MacCormick, pondera que:

“Além da adequação da norma ao caso concreto e, portanto, da dimensão lógica da decisão e da argumentação jurídica, apenas estaremos diante de uma decisão justificada se colocarmos as possíveis soluções para o caso em debate ‘à prova’. E isso é feito por uma justificação de segunda ordem, que envolve o teste de tais soluções em face dos critérios normativos segundo os quais uma decisão é considerada correta – o que significa bem justificada”.

A decisão, de acordo com tais critérios, deve ser (i) consistente – não conter  contradições em relação ao sistema jurídico, (ii) coerente – realizar os fins e valores do sistema jurídico, e, finalmente (iii) as suas conseqüências jurídicas devem ser aceitáveis.

As conseqüências jurídicas da decisão, na perspectiva da doutrina exposta, são consideradas aceitáveis se as razões que dão suporte à decisão puderem ser universalizadas, no sentido de um padrão de conduta “que deve ser observado (do ponto de vista jurídico e não apenas moral) por todos os cidadãos e autoridades, por exigência do princípio de justiça formal” (id. p. 1144). A universalização é aceitável se realizar, ou não contrariar, os valores relevantes ou aceitos naquela específica província do direito.

“Assim, se a teoria da argumentação jurídica de MacCormick postula que uma parte essencial e decisiva do processo de justificação das decisões é a avaliação de suas conseqüências, uma decisão bem justificada seria aquela que, além de consistente e coerente com o ordenamento jurídico, é aceitável em suas conseqüências. Dessa forma, deve-se concluir que a conseqüência com a qual essa teoria se preocupa é a conseqüência lógica da decisão ligada ao princípio da universalidade” (id. p. 1145).

A decisão judicial sob exame considerou extinto o crédito tributário, por ter sobrevindo a prescrição do direito subjetivo da Fazenda Pública de exigi-lo em juízo, considerando como marco inicial da contagem do prazo prescricional a data de vencimento da prestação. Embora a Fazenda não tenha praticado nenhum ato para formalizar sua pretensão impositiva no caso concreto, a data de vencimento foi considerada como da constituição do crédito tributário.

Como pode ser justificada a decisão, segundo os critérios normativos propostos pela teoria de MacCormick?

Do ponto de vista da consistência, o marco considerado como inicial da contagem do prazo de prescrição é anterior à própria constituição do crédito tributário, no que contraria a dicção do art. 174 do CTN que manda contar o prazo a partir da constituição definitiva do crédito tributário. O prazo de prescrição também começaria a correr em momento anterior ao do prazo decadencial, nos termos do art. 173, I – primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento (constituição do crédito tributário) poderia ter sido efetuado. A decisão, portanto, encerra uma contradição em relação ao sistema jurídico.

Do ponto de vista da coerência, a decisão institui tratamento jurídico diferenciado entre os que satisfizeram pontualmente suas obrigações tributárias – recolhimento do IPVA no prazo regulamentar – e os que descumpriram suas obrigações, favorecidos por uma interpretação errônea do marco inicial para contagem do prazo de prescrição. A decisão, desse modo, vulnera o principio da isonomia tributária, albergado no art. 150, II, da Constituição da República, que proíbe “instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente”. A decisão não realiza a justiça tributária (valor perseguido pelo direito), vista aqui como tratamento isonômico (suum cuique tribuere).

 Por fim, a decisão inviabiliza a cobrança do IPVA dos contribuintes inadimplentes, frustrando a finalidade primordial do direito tributário que é carrear recursos aos cofres públicos – especificamente ao Estado e aos Municípios. O setor público depende da arrecadação tributária, cobrada de todos segundo a capacidade contributiva de cada um, para realizar suas finalidades essenciais: oferecimento de serviços públicos de qualidade a toda população, consecução do bem comum e garantia do estado de direito. Como bem observa Tathiane Piscitelli (op. cit. p. 1148):

“... na identificação dos valores inerentes ao direito tributário, devemos destacar não apenas as questões afetas aos direitos dos contribuintes, mas na mesma medida, aquelas relativas ao direcionamento de receitas aos cofres públicos”. Argumenta a autora que tanto em um como em outro caso, “tem-se a realização do Estado de Direito”, mesmo porque ele somente existe na medida em que existam tributos para financiá-lo. Finaliza a autora dizendo que:

“Falar em direito tributário sem o reconhecimento de sua função primordial – qual seja, assegurar receitas para que o Estado possa garantir os direitos dos cidadãos, inclusive aqueles especificamente relacionados com a esfera tributária – é armar-se de uma visão restrita do fenômeno tributário”.

As garantias dadas por lei ao contribuinte e as limitações impostas ao poder de tributar não afastam a intenção fundamental do direito tributário que é assegurar as receitas necessárias para financiar o setor público. Assim, se ao cidadão corresponde o dever de contribuir para o financiamento do Estado, assiste-lhe o direito de ser tributado conforme a sua capacidade contributiva e nos estritos limites impostos pela legislação tributária. 

Com efeito, o IPVA foi instituído por lei, observados o princípio da anualidade e da irretroatividade, bem como as demais limitações constitucionais ao poder de tributar, previstas no art. 150 da Carta da República. Assim, a instituição do imposto respeita as garantias e direitos assegurados pela Constituição ao contribuinte. Resta garantir a razão de ser do tributo que é o financiamento do setor público.

Nas palavras do próprio Neil MacCormick (Argumentação Jurídica e Teoria do Direito, São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 192), “as leis têm objetivos racionais voltados para garantir benefícios sociais ou evitar males sociais de um modo compatível com a justiça entre os indivíduos. E a busca desses valores deveria exibir uma coesão racional, na medida em que as conseqüências de uma decisão particular estivessem em consonância com os propósitos atribuídos a princípios afins do direito”.

 

9. Recomendações:

Na parte final de seu voto, o Min. Humberto Martins, relator do AgRg no AgIn 1.399.575, faz o seguinte comentário:

“Ademais, a tese de que a constituição definitiva do crédito tributário teria ocorrido somente após o término de processo administrativo fiscal não foi analisada na origem, o que impede a sua análise, por falta de prequestionamento, nos termos das Súmulas 282 e 356 do STF. Se o recorrente entendesse existir alguma eiva no acórdão impugnado, ainda que a questão federal tenha surgido somente no julgamento no Tribunal a quo, deveria ter oposto embargos declaratórios, a fim de que fosse suprida a exigência do prequestionamento e viabilizado o conhecimento do recurso em relação aos referidos dispositivos legais. Caso persistisse tal omissão, imprescindível a alegação de violação do art. 535 do Código de Processo Civil, quando da interposição do recurso especial com fundamento na alínea "a" do inciso III do art. 105 da Constituição Federal, sob pena de incidir no intransponível óbice da ausência de prequestionamento”.

Recomendamos, portanto, que seja articulada, junto à Procuradoria Geral do Estado, estratégia para enfrentar futuras discussões em juízo sobre a mesma matéria, com o devido pré-questionamento, para que possa ser, enfim, discutida junto ao Superior Tribunal de Justiça.

Ou seja, tratando-se de lançamento ex officio de IPVA, a Fazenda deve levantar, desde o início, a discussão sobre (i) em que momento considera-se definitivamente constituído o crédito tributário, (ii) quando o sujeito passivo é cientificado do lançamento e (iii) qual o marco inicial da contagem do prazo de prescrição.

Deve ficar claro que os precedentes invocados do STJ são inaplicáveis ao caso catarinense em que não são remetidos “boletos” ao contribuinte ou qualquer outro ato inequívoco, por parte do Fisco, que possa ser entendido como constituinte do crédito tributário.

À consideração superior.

Getri, em Florianópolis, 3 de janeiro de 2012.

 

 

Velocino Pacheco Filho                                       Lintney Nazareno da Veiga

AFRE - matr. 184244-7                                          Gerente de Tributação