CONSULTA 34/2019
EMENTA: ICMS. TRANSFERÊNCIA DE MERCADORIAS ENTRE ESTABELECIMENTOS DE MESMA TITULARIDADE. INCIDÊNCIA PREVISTA NOS ARTS. 12 E 13, § 4º DA LEI COMPLEMENTAR 87/1996. INAPLICÁVEL JURISPRUDÊNCIA BASEADA EM LEGISLAÇÃO REVOGADA. INVIABILILIZADA APROPRIAÇÃO DE CRÉDITOS RELATIVOS A OPERAÇÕES ANTERIORES CUJA NÃO-INCIDÊNCIA FOI RECONHECIDA POR SENTENÇA JUDICIAL, EM VISTA DE FALTA DE DISPOSIÇÃO EM CONTRARIO DA LEGISLAÇÃO, CONFORME CONSTITUIÇÃO FEDERAL, ART. 155, § 2º, II, “B”.
Pe/SEF em 06.05.19
Da Consulta
Cuida-se de consulta formulada por cooperativa
agropecuária mista que, segundo informa, tem por atividade principal o
beneficiamento de arroz, recebido de seus cooperados, estabelecidos em Santa
Catarina e no Rio Grande do Sul. Em 2008 inaugurou indústria de beneficiamento
de arroz em Santo Antônio da Patrulha, RS, e, devido às inúmeras operações de
transferência entre os estabelecimentos de sua titularidade, em Jacinto Machado
e Santo Antônio da Patrulha, impetrou mandado de segurança, já transitado em
julgado, para não mais recolher ICMS sobre as transferências entre seus
estabelecimentos.
Relata que recolhia o ICMS sobre essas operações de transferência,
“sendo contemplada por hipótese de isenção quanto ao ICMS diferido relativo às
operações de aquisição de produção rural de seus cooperados”. Acrescenta que,
apesar de ser responsável pelo imposto diferido, somente precisava recolher o
ICMS próprio.
Contudo, em razão do mandado de segurança, deixou de recolher o ICMS
próprio e o ICMS diferido.
A consulente foi autuada quanto ao não recolhimento do ICMS diferido,
devido por responsabilidade. Relaciona os autos de infração lavrados pelo
Estado do Rio Grande do Sul.
Entende que, uma vez realizados os recolhimentos em favor do Estado
do Rio Grande do Sul, ainda que parceladamente, terá assegurado o direito de se
creditar do valor do ICMS pago pela sistemática do diferimento, na justa
proporção dos pagamentos realizados.
Nesse sentido, formulou consulta ao Fisco do Rio Grande do Sul que
negou o direito da consulente quando do pagamento dos referidos débitos do
ICMS. A decisão teve por fundamento o seguinte: (i) tais créditos seriam
apropriáveis pelo estabelecimento destinatário, localizado em Santa Catarina e
não no Rio Grande do Sul e (ii) como a saída
subsequente à saída diferida foi não tributada ou isenta, fica vedado o direito
ao crédito.
Argumenta a consulente que teve reconhecido o direito de não oferecer
à tributação suas operações de transferência destinadas a este Estado. No
entanto, deveria ter recolhido o ICMS relativo à operação anterior, devido a
título de diferimento. Foi autuada pelo Rio Grande do Sul, relativamente a
essas operações, tendo quitado tais valores. Conclui que tem direito a
creditar-se de tais valores, em nome do princípio da não-cumulatividade.
Persiste, contudo, a dúvida quanto a apropriação do crédito, se imediatamente, na sua integralidade, ou gradualmente, na proporção das parcelas pagas. Invoca resposta a consulta do Estado do Rio de Janeiro.
Legislação
Constituição Federal, art. 155, II, § 2º, I e II;
Código Tributário Nacional, art. 102;
Lei Complementar 87/1996, arts. 12 e 13, § 4º.
Fundamentação
A competência para
instituir o ICMS, conforme art. 155, II, da Constituição Federal, foi deferida
aos Estados. A atribuição constitucional de competência tributária – art. 6º do
CTN – compreende a competência legislativa plena, ressalvadas as limitações
contidas na Constituição Federal e na do Estado. Ora, a legislação tributária
dos Estados vigora fora dos respectivos territórios nos limites em que lhe
reconheçam extraterritorialidade os convênios de que participem. Resumindo, a
legislação tributária do Estado do Rio Grande do Sul se aplica no território do
Estado do Rio Grande do Sul, assim como a legislação tributária do Estado de
Santa Catarina se aplica no território catarinense.
No tocante ao diferimento trata-se de uma postergação da exigência do imposto para etapa subsequente da cadeia de comercialização da mercadoria. Dispõe a legislação que que o imposto diferido subsumir-se-á na operação tributada subsequente promovida pelo substituto. Ou seja, relativamente à mercadoria recebida de produtor rural, o imposto diferido será recolhido, por ocasião da saída subsequente, juntamente com o imposto próprio do destinatário. Exemplificando: recebimento de mercadoria de produtor rural no valor de R$ 100,00 – o imposto que seria devido se não fosse diferido é de R$ 17,00. Suponhamos que o destinatário, por sua vez, revende a mercadoria por R$ 150,00, recolhendo R$ 25,50 de ICMS. Esse valor pode ser desdobrado em R$ 17,00, correspondente ao imposto diferido, e R$ 8,50 de imposto próprio do substituto.
Mas, se a operação subsequente não for tributada? Nesse caso o
destinatário deve recolher, por responsabilidade, o imposto diferido, ou seja,
R$ 17,00. O contribuinte substituto deverá recolher o imposto diferido quando
não promover nova operação tributada ou a promover sob regime de isenção ou
não-incidência, salvo quanto às operações que destinem mercadorias diretamente
para o exterior do país. Por conseguinte, o
ICMS relativo aos produtos agropecuários recebidos de cooperados estabelecidos
no Rio Grande do Sul será devido, nos termos da legislação do Rio Grande do
Sul, na hipótese em tela. Não exigibilidade do imposto por força de decisão
judicial.
Um último ponto a ser levantado
refere-se ao princípio da não-cumulatividade. O art. 155, § 2º, I, da
Constituição Federal dispõe que o ICMS será não-cumulativo,
compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de
mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo
mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal. Lecionam Geraldo Ataliba e
Cleber Giardino (ICM – Abatimento
constitucional – Princípio da não cumulatividade. RDT nº 29/30,
p. 115) que o chamado princípio da não-cumulatividade do ICM acaba
resolvendo-se, em termos jurídicos – porque jurídica é a sua vocação – num
singelo direito de abater; um simples direito de abatimento. Trata-se de
mecanismo que visa assegurar a neutralidade do imposto, como ensina Aroldo
Gomes de Mattos (ICMS: comentários à legislação nacional. São
Paulo: Dialética, 2006, p. 273):
Consiste a sistemática da não-cumulatividade na dedução ou abatimento compulsório do imposto incidido nas operações e prestações anteriores das subsequentes. Trata-se, pois, o ICMS de um tributo teoricamente neutro nas fases da produção e circulação das mercadorias e serviços, já que quem deve suportar integral e unicamente sua carga é o consumidor final.
Então, o crédito do ICMS nada mais é que o próprio imposto que incidiu em etapas anteriores de comercialização que o constituinte permite recuperar para viabilizar a neutralidade do tributo. Porém, o direito ao crédito não é absoluto. O inciso II, alínea b, do mesmo parágrafo dispõe que a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores. Por conseguinte, o imposto que deixou de ser recolhido, por força de decisão judicial, não dá direito a crédito.
A consulente alega a Súmula 166 do Superior Tribunal de Justiça: “Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte”.
As razões do enunciado estão melhor explicitadas na decisão no Recurso Especial 1.125.133 SP, da Primeira Seção do Tribunal, relatada pelo Min. Luiz Fux (DJe 10/09/2010, RTFP vol. 96 p. 392):
1. O deslocamento de bens ou mercadorias entre estabelecimentos de uma
mesma empresa, por si, não se subsume à hipótese de
incidência do ICMS, porquanto, para
a ocorrência do fato imponível é imprescindível a circulação jurídica da
mercadoria com a transferência da propriedade.
A Súmula 166 do STJ foi publicada em agosto de 1996, interpretando a legislação então em vigor, ou seja, os arts. 1º, I, §§ 2º e 6º, e 6º, § 2º do Decreto-Lei 406/1968. Entretanto, em setembro do mesmo ano foi publicada a Lei Complementar 87/1996 que revogou o Decreto-lei 406/1968 e deu novo tratamento à matéria:
Art. 12. Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento:
I – da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular;
........................................................
Art. 13. A base de cálculo do imposto é:
........................................................
§ 4º Na saída de mercadoria para estabelecimento localizado em outro Estado, pertencente ao mesmo titular, a base de cálculo do imposto é:
I – o valor correspondente à entrada mais recente de mercadoria;
II – o custo da mercadoria produzida, assim entendida a soma do custo da matéria-prima, material secundário, mão-de-obra e acondicionamento;
III – tratando-se de mercadorias não industrializadas, o seu preço
corrente no mercado atacadista do estabelecimento remetente.
O art. 12 trata do critério temporal da hipótese de incidência. Mas, à evidência, somente há que se cogitar de um aspecto temporal se houver um aspecto material. Está implícito na redação do artigo que se considera ocorrido o fato gerador do imposto na saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte para outro estabelecimento do mesmo titular.
Como se não bastasse, o § 4º do art. 13 define critérios para a determinação da base de cálculo na saída de mercadoria para estabelecimento localizado em outro Estado pertencente ao mesmo titular. Não teria sentido definir a base de cálculo em hipótese de não incidência do ICMS. Portanto, incide o ICMS em operações de transferência entre estabelecimentos do mesmo titular. Se a legislação complementar, a quem cabe dispor sobre normas gerais de direito tributário, dispõe sobre a base de cálculo nas transferências interestaduais é porque incide o imposto estadual nessas transferências. Caso contrário, a norma não teria aplicação o que não se admite.
Dispõe o art. 146, III, da Constituição da República que cabe à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária. Esse papel uniformizador foi desempenhado, até a edição da Lei Kandir, pelo Decreto-lei 406/1968. A matéria passou a ser tratada pela Lei Complementar 87/1996. Por conseguinte, a jurisprudência construída com base na lei que foi revogada cai toda por terra porque a legislação aplicável passou a ser outra.
O que, na verdade, se discute, é se a mudança de titularidade é da essência do fato gerador do ICMS ou não. Além da Lei Complementar 87/1996 ter considerada a questão irrelevante – a ponto de dispor sobre a base de cálculo nas transferências interestaduais entre estabelecimentos de mesma titularidade – eminentes tributaristas têm adotado posicionamento diverso sobre esta matéria:
A operação há de ser relativa à circulação de mercadorias, não necessariamente uma operação de circulação. Em outras palavras, não se exige que a operação transfira a propriedade ou a posse da mercadoria, mas apenas que seja relativa à circulação, vale dizer, capaz de realizar o trajeto da mercadoria da produção até o consumo, ainda que permanecendo no patrimônio da mesma pessoa jurídica (MACHADO, Hugo de Brito. Aspectos Fundamentais do ICMS. São Paulo: Dialética, 1997, p. 25).
O fato gerador do imposto se caracteriza como operações relativas à circulação de mercadorias o que torna irrelevante a mudança de titularidade da mercadoria. O autor cita como exemplo a saída de mercadorias em consignação que, apesar das mercadorias permanecerem no patrimônio do mesmo sujeito passivo, nem por isso deixa de constituir fato gerador do ICMS.
Da mesma forma, a transferência do estabelecimento fabricante para um estabelecimento distribuidor da mercadoria, embora pertencentes ao mesmo titular, caracteriza operação relativa à circulação de mercadorias. Note-se que as operações em que a mercadoria retorna, como nas remessas para industrialização, por exemplo, a legislação suspende a incidência do imposto.
A interpretação é exercida sobre um texto normativo, como leciona Eros Roberto Grau:
A norma encontra-se em estado de potência involucrada no texto e o intérprete a desnuda. Nesse sentido – isto é, no sentido de desvencilhamento da norma de seu invólucro: no sentido de fazê-la brotar do texto, do enunciado – é o que afirmo que o intérprete “produz a norma”. O intérprete compreende o sentido originário do texto e o mantém (deve manter) como referência de sua interpretação (GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 22).
Assim, se a norma muda; se a legislação passa a tratar diversamente a matéria, então a jurisprudência baseada em norma revogada não pode mais ser aplicada. Ela não é oponível ao novo texto normativo vigente.
Ora, os arts. 12 e 13, § 4º, da Lei Complementar 87/1996 não foram declarados inconstitucionais. Assim, as autoridades administrativas estão obrigadas a dar-lhe cumprimento, sob pena de desobediência a norma legal que goza de presunção de constitucionalidade até que esta seja declarada pelo Poder Judiciário, dependendo ainda de confirmação pelo Senado da República, no caso da declaração incidental de inconstitucionalidade.
Resposta
Preliminarmente deve-se observar que as operações entre cooperados e o estabelecimento rio-grandense são operações internas no Rio Grande do Sul que deve obedecer à legislação rio-grandense.
Já a operação de transferência do estabelecimento rio-grandense para o
estabelecimento catarinense, em que a incidência do imposto foi afastada por
decisão judicial (aplicação da Súmula 166 do STJ) não dá direito a crédito, por
força da regra insculpida no art. 155, § 2º, II, “b” da Constituição
Federal.
Por fim, no caso de cooperados estabelecidos no Rio Grande do Sul que remetem mercadorias para estabelecimento catarinense, a operação será diferida ou não nos termos da legislação rio-grandense. O estabelecimento catarinense, por sua vez, poderá transferir essas mercadorias para outro estabelecimento da cooperativa ou revende-las a terceiros. No caso de transferência, não atingida por ordem judicial, a operação é tributada nos termos do § 4º do art. 13 da Lei Complementar 87/1996; no caso de revenda para terceiros a operação deve ser tributada normalmente.
À superior consideração da Comissão.
VELOCINO PACHECO FILHO
AFRE IV - Matrícula: 1842447
De acordo. Responda-se à consulta nos termos do parecer acima, aprovado pela COPAT na Sessão do dia 04/04/2019.
A resposta à presente consulta poderá, nos termos do § 4º do art. 152-E do Regulamento de Normas Gerais de Direito Tributário (RNGDT), aprovado pelo Decreto 22.586, de 27 de julho de 1984, ser modificada a qualquer tempo, por deliberação desta Comissão, mediante comunicação formal à consulente, em decorrência de legislação superveniente ou pela publicação de Resolução Normativa que adote diverso entendimento.
Nome Cargo
ROGERIO DE MELLO MACEDO DA SILVA Presidente COPAT
CAMILA CEREZER SEGATTO Secretário(a) Executivo(a)