EMENTA: ICMS.
TRANSFERÊNCIA DE MERCADORIAS PARA ESTABELECIMENTO DA MESMA EMPRESA EM OUTRO
ESTADO. PRINCÍPIO DA FEDERAÇÃO. A BASE DE CÁLCULO PREVISTA NO ART. 13, § 4º,
II, DA LEI COMPLEMENTAR Nº 87/96 DEVE SER INTERPRETADA LITERALMENTE, SEM
ACRESCENTAR OUTROS ITENS, POIS A REGRA DEFINE A DISTRIBUIÇÃO DA RECEITA
TRIBUTÁRIA ENTRE ESTADO DE ORIGEM E DE DESTINO.
PROCESSO Nº:GR07
44.926/02-2
01 - DA CONSULTA
Cuida-se
de consulta formulada por empresa deste Estado que atua no ramo de industrialização
de produtos agrícolas, sobre preço de transferência para estabelecimentos da
mesma empresa localizados em outros Estados.
A
legislação tributária estadual – RICMS-SC/01, art. 10, II – define o preço de
transferência nos seguintes termos: “o custo da mercadoria produzida, assim
entendida a soma do custo da matéria-prima, material secundário, mão-de-obra e
acondicionamento”. Observa que a redação é a mesma da Lei Complementar nº
87/96, art. 13, § 4º, II.
O
entendimento da consulente é que o referido dispositivo não é exaustivo, “pois
para que seja apurado o custo real da mercadoria, temos de considerar, também,
a manutenção, a depreciação e o frete”. Em apoio à sua tese, invoca a
legislação do Imposto de Renda – Decreto nº 3.000/99, verbis:
“Art. 305. Poderá ser computada, como custo ou
encargo, em cada período de apuração, a importância correspondente à diminuição
do valor dos bens do ativo resultante do desgaste pelo uso, ação da natureza e
obsolecência normal (Lei nº 4.506, de 1964, art. 57).”
“Art. 346. Serão admitidas, como custo ou despesa
operacional, as despesas com reparos e conservação de bens e instalações
destinadas a mantê-los em condições eficientes de operação (Lei nº 4.506, de
1964, art. 48).”
Argumenta
ainda a consulente que o custo composto somente dos itens relacionados na
legislação estadual implicaria “significativa redução da base de cálculo do
ICMS e, conseqüentemente, uma perda de arrecadação”. Finaliza seu arrazoado
dizendo que “teríamos dois custos, um admitido pela legislação federal, outro
pela estadual, situação que seria praticamente impossível administrar”.
Posto
isto, indaga a esta Comissão se a disposição da legislação estadual pode ser
entendida como meramente exemplificativa e que seria possível acrescer ao custo
os valores correspondentes à manutenção, à depreciação e ao frete.
A
autoridade fiscal, em sua informação de estilo, analisa a questão levantada
pela consulente nos seguintes termos:
“O dispositivo que trata da composição do custo dos
produtos industrializados a serem transferidos entre estabelecimentos do mesmo
proprietário é limitado aos itens principais que agregam valor ao produto, ou
seja, o mínimo necessário e indispensável a ser exigido do contribuinte para
assegurar que não haja subfaturamento nas transferências interestaduais entre
filiais. Entendo que não deva ser considerado como limite e sim como uma base
inicial para compor o custo dos produtos industrializados e que cada
estabelecimento, obedecendo o mínimo disposto em regulamento e as particularidades
de cada atividade, possa apurar seus custos conforme suas planilhas de custos
envolvidos, acrescentando outros que venham a somar para apresentar um custo
real de seus produtos, principalmente quando boa parcela da totalidade de sua
produção é destinada a transferências.”
02 - LEGISLAÇÃO APLICÁVEL
Constituição
Federal, arts. 24, I, 146, III, “a”, 153 e 155;
Lei
Complementar nº 87/96, art. 13, § 4º, II;
RICMS-SC,
aprovado pelo Decreto nº 2.870/01, art. 10, II.
03 - FUNDAMENTAÇÃO E RESPOSTA
Preliminarmente,
devemos recordar que o Brasil é uma Federação. Os Estados-membros não são meras
divisões territoriais ou administrativas, mas pessoas políticas dotadas de
autonomia, compreendendo atribuições e competências próprias. Na verdade,
existe um delicado equilíbrio de competências e atribuições entre a União e os
Estados-membros.
Tanto
a União quanto os Estados-membros podem legislar sobre direito tributário,
respeitadas as regras previstas na Constituição e nas leis complementares que
regem a matéria. A União legisla privativamente sobre os tributos de sua
competência, previstos no art. 153 da Carta Magna. Da mesma forma, os
Estados-membros legislam privativamente sobre os tributos cuja competência lhes
foi atribuída pelo art. 155 da Lei Suprema. A União não pode legislar sobre
tributos de competência dos Estados-membros, da mesma forma que os
Estados-membros não podem legislar sobre tributos de competência da União.
Dispõe
o inciso I do art. 24 da Constituição que o direito tributário é de competência
concorrente entre União, Estados e Distrito Federal. Ou seja, tanto a União
quanto os Estados podem legislar sobre direito tributário, porém, a competência
da União, nos termos do § 1º do mesmo artigo, limita-se a estabelecer regras
gerais. Qualquer outra disposição da legislação federal, que não se caracterize
como regra geral de direito tributário, somente se aplica aos tributos
federais, não tendo qualquer efeito obrigatório sobre os tributos estaduais.
Isto porque tanto as leis tributárias federais como as leis tributárias
estaduais têm o seu fundamento de validade na Constituição da República.
Roque
Antonio Carrazza, em seu “Curso de Direito Constitucional Tributário” (2005,
pg. 139) leciona que “o Brasil é um Estado Federal, em que a União e os
Estados-membros ocupam, juridicamente, o mesmo plano hierárquico”. As leis
federais não são hierarquicamente superiores às leis estaduais, nas respectivas
esferas de competência, disciplinadas pela Constituição. Por isso, “o Congresso
Nacional não está credenciado, nem mesmo em nome do interesse nacional, a
usurpar ou, mesmo, diminuir competências estaduais (políticas, legislativas e
administrativas) traçadas na Constituição Federal”. Conclui o mesmo autor (pg.
141):
“De fato, inexiste hierarquia jurídica entre os entes
federativos. Todos são pessoas jurídicas dotadas de plena capacidade política,
enquanto atuarem dentro de suas esferas de competência, constitucionalmente
traçadas. Portanto, a harmonia deve presidir a convivência dos entes
federativos (pessoas políticas). Há, aliás, implícita na Constituição
brasileira a idéia de que desta convivência harmoniosa resultará o bem
de toda a Nação.”
Ora,
em matéria de ICMS, as regras gerais a que se refere o § 1º do art. 24 da
Constituição foram tratadas pela Lei Complementar nº 87, de 13 de setembro de
1996. Com efeito, o art. 146, III, “a” da Lei Maior dispõe que “cabe à lei
complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária,
especialmente sobre ... base de cálculo”. Então, a competência da União
para legislar sobre normas gerais de direito tributário, no âmbito da
competência legislativa concorrente, deve ser exercida mediante lei
complementar e jamais por lei ordinária, lei delegada ou medida provisória.
O
dispositivo regulamentar, cujo alcance e interpretação a consulente pede
resposta a esta Comissão, nada mais faz que reproduzir disposição da Lei
Complementar nº 87/96 e, portanto, reveste-se do caráter de norma geral de
direito tributário. Portanto, a legislação estadual não pode dispor de modo
contrário à lei complementar, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade. O
texto correspondente da lei complementar diz o seguinte:
“Art. 13.
........................................................................................................................................................
.....................................................................................................................................................................
§ 4º Na saída de mercadoria para estabelecimento
localizado em outro Estado, pertencente ao mesmo titular, a base de cálculo
do imposto é:
I - o valor correspondente à entrada mais recente da
mercadoria;
II - o custo da mercadoria produzida, assim entendida
a soma do custo da matéria-prima, material secundário, mão-de-obra e
acondicionamento;
III - tratando-se de mercadorias não industrializadas,
o seu preço corrente no mercado atacadista do estabelecimento remetente.”
A
regra analisada define expressamente a base de cálculo (matéria reservada ao legislador
complementar) do imposto na hipótese de transferência para estabelecimento da
mesma empresa em outra unidade da Federação. Tratando-se de regra de lei
complementar, é de observância obrigatória para todos os Estados aos quais não
é permitido dispor unilateralmente de modo diverso, quer acrescentando itens,
quer os suprimindo.
Se
o legislador complementar se limitasse a definir a base de cálculo nas
transferências interestaduais como “o custo da mercadoria produzida”, seria
legítimo o intérprete buscar o conceito na ciência contábil. Mas, ele não o
fez. Pelo contrário, os itens que devem ser computados no cálculo foram, por
ele, relacionados detalhadamente: o custo da mercadoria deve ser entendido como
“a soma do custo da matéria-prima, material secundário, mão-de-obra e
acondicionamento”. Ele não deu liberdade ao intérprete para adotar conceito
diverso ou para integrar o texto de modo a completar-lhe o sentido. O custo a
que se refere o legislador não é o custo contábil, mas um conceito específico para
esta finalidade: a definição da base de cálculo nas transferências.
Da
mesma forma, descabe aplicar a legislação federal para ampliar o texto da lei
complementar. Em primeiro lugar, porque as leis ordinárias da União, sobre
matéria tributária, não são de observância obrigatória para os Estados-membros.
Os tributos cuja competência foi atribuída aos Estados pela Constituição
Federal regem-se pelas leis estaduais, ressalvado o caso de leis complementares
de normas gerais.
Em
segundo lugar, uma lei ordinária federal não pode modificar uma lei
complementar federal. No caso em tela,
a Lei nº 4.506, de 1964, e a Lei Complementar nº 87, de 1996. Como corolário,
temos que a lei complementar não pode ser interpretada ou integrada conforme a
lei ordinária. Embora o contrário seja possível.
Em
terceiro lugar, os respectivos diplomas legais tratam de impostos diferentes. O
imposto de renda tem como fato gerador “a aquisição de disponibilidade
econômica ou jurídica” definida como renda – o “produto do capital, do trabalho
ou da combinação de ambos” – ou como proventos – entendido como os acréscimos
patrimoniais que não constituam renda (CTN, art. 43). Já o ICMS tem fatos
geradores completamente distintos: operações de circulação de mercadorias e
prestações de serviço de transporte interestadual e intermunicipal e de
comunicação. A lógica dos dois impostos é diferente. Para o legislador do
imposto de renda, interessa mensurar a renda do contribuinte – pessoa física ou
jurídica. Para o legislador do ICMS, interessa a determinação do valor da
operação ou da prestação.
A
base de cálculo relaciona-se com o fato gerador do imposto, na medida que
constitui a sua dimensão financeira. Contudo, no caso em tela, não existe valor
da operação. Como se trata de transferência entre estabelecimentos da mesma
empresa, não há um preço, pactuado entre comprador e vendedor que demonstre o
valor da operação. Neste caso, o legislador define uma base de cálculo,
adotando outro critério como o custo de produção da mercadoria. Mas ele não está
sujeito ao conceito contábil ou à legislação federal. Pelo contrário, pode
construir um novo conceito, para atender aos seus propósitos.
Que
propósitos seriam esses? A autoridade fiscal levanta, em sua informação, a tese
de que a regra se destina a evitar o subfaturamento, estabelecendo o valor
mínimo tributável. Conclui daí que é possível atribuir qualquer valor à
operação, desde que seja superior a esse valor mínimo.
A
tese não pode prosperar, pois qualquer aumento de arrecadação no Estado de
origem da mercadoria, pela prática de preços de transferências superiores ao
“valor mínimo” estabelecido pela legislação, corresponde a uma queda de
arrecadação no Estado de destino. Se esse fosse o sentido da regra, o
legislador complementar estaria favorecendo o Estado de origem em detrimento do
Estado de destino o que afrontaria o princípio federativo, ou seja, da
igualdade entre os Estados-membros. Ademais, a Constituição Federal veda
expressamente a União de “instituir tributo que implique distinção ou preferência
em relação a Estado, em detrimento de outro” (art. 151, I), a fortiori,
também fica vedado o favorecimento de unidade da Federação, no exercício da
competência legislativa concorrente.
O
propósito do legislador é definir um critério de repartição da receita
tributária entre o Estado de origem da mercadoria e o Estado de destino.
Posto
isto, responda-se à consulente que a interpretação do inciso II do § 4º do art.
13 da Lei Complementar nº 87, de 1996, é literal, não podendo ser acrescido de
outros itens não previstos expressamente, sob pena de vulnerar o princípio
federativo que assegura a igualdade entre os membros da Federação.
À superior consideração da
Comissão.
Getri,
em Florianópolis, 16 de novembro de 2005.
Velocino Pacheco Filho
AFRE – matr. 184244-7
De
acordo. Responda-se à consulta nos termos do parecer acima, aprovado pela Copat
na Sessão do dia 22 de novembro de 2005.
Josiane de Souza Corrêa
Silva Renato Luiz Hinnig
Secretário Executivo Presidente da
Copat