ESTADO DE SANTA CATARINA
SECRETARIA DE ESTADO DA FAZENDA
COMISSÃO PERMANENTE DE ASSUNTOS TRIBUTÁRIOS
RESPOSTA CONSULTA 50/2023

N° Processo 2370000029468


Ementa

ITCMD. FATO GERADOR. A CONSTITUIÇÃO DE ENFITEUSE ADMINISTRATIVA NÃO É FATO GERADOR DO ITCMD, HAJA VISTA A ONEROSIDADE INTRINSECA AO INSTITUTO CARACTERIZADA PELA OBRIGAÇÃO AO PAGAMENTO ANUAL DO FORO.


Da Consulta

Narra o consulente que assinou contrato de constituição de aforamento com a Secretaria de Gestão de Patrimônio da União. Que ao buscar o registro do direito real na matrícula do imóvel, o Senhor Registrador solicitou o pagamento do ITCMD.

Entende, no entanto, pela não incidência do imposto, solicitando que esta I. Comissão afirme se está correto seu entendimento.

O processo foi analisado no âmbito da Gerência Regional conforme determinado pelas Normas Gerais de Direito Tributário de Santa Catarina, aprovadas pelo Dec. nº 22.586/1984. A autoridade fiscal verificou as condições de admissibilidade.

É o relatório, passo à análise.


Legislação

Lei 13.136, de 25.11.2004, art. 2º.

Lei nº 3.071, de 1º.01.1916, art. 678.

Lei nº 10.406, de 10.01.2002, art. 2.038.

Decreto-Lei nº 9.760, de 5.09.1946, art. 101 e art. 103, I.


Fundamentação

A presente consulta tributária busca identificar se a instituição de enfiteuse em terreno de marinha, outrora submetido ao regime de ocupação pelo consulente, subsume-se ao conceito de doação para fins de incidência de ITCMD.

Inaugurando a interpretação a que se propõe, o artigo 110 do Código Tributário Nacional limita o exegeta na aplicação da hermenêutica, impedindo-o de alterar institutos do Direito Civil para definir competência tributária:

 

Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.

 

No Código Civil de 1916, instituído pela Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916, elaborado antes das modernas preocupações acerca da função social da propriedade, o poder conferido ao proprietário era tamanho que este poderia dispor dos componentes da propriedade sem abdicar do direito de proprietário. Tal figura era conhecida como enfiteuse, aforamento ou emprazamento e era um direito real sobre bem imóvel alheio, onde o proprietário transferia os direitos inerentes a propriedade a terceiro. Eis a redação do artigo 678 do Código Civil de Beviláqua:

 

Art. 678. Dá-se a enfiteuse, aforamento, ou emprazamento, quando por ato entre vivos, ou de última vontade, o proprietário atribui a outrem o domínio útil do imóvel, pagando a pessoa, que o adquire, e assim se constitui enfiteuta, ao senhorio direto uma pensão, ou foro, anual, certo e invariável.

 

Caio Mário Pereira define o conceito de aforamento ou enfiteuse como sendo um direito real e perpétuo de possuir, usar e gozar de coisa alheia e de empregá-la na sua destinação natural sem lhe destruir a substância, mediante o pagamento de um foro anual invariável.

Não se afastando da definição adrede transcrita, DA COSTA assim a define:


A enfiteuse, também denominada aforamento ou emprazamento, é o negócio jurídico pelo qual o proprietário (senhorio) transfere ao adquirente (enfiteuta), em caráter perpétuo, o domínio útil, a posse direta, o uso, o gozo e o direito de disposição sobre bem imóvel, mediante o pagamento de renda anual (foro). (in Valestim Milhomem da Costa, Enfiteuse – Aforamento ou Emprazamento. IRIB. pag. 4)

 

Como instituto do Direito Civil, a enfiteuse é nitidamente o mais amplo de todos os direitos reais sobre coisa alheia, pois consiste na permissão dada ao proprietário de entregar a outrem todos os direitos sobre a coisa de tal forma que o terceiro que os recebeu passe a ter o domínio útil da coisa mediante pagamento de uma pensão ou foro ao senhorio. Pela enfiteuse o foreiro tem sobre a coisa alheia o direito de posse, uso, gozo, alienação e transmissão por herança, com a eterna obrigação de pagar pensão ao senhorio. Divide-se o próprio domínio em direto e útil.

Ao foreiro são impostas, então, duas obrigações. A primeira de pagar ao senhorio uma prestação anual, certa e invariável denominado foro, canon ou pensão, sob pena de “comisso”, que é a perda do direito sobre o bem, com a consequente reaquisição do mesmo pelo senhorio. A segunda obrigação está em dar ao proprietário o direito de preferência toda vez que houver alienação do domínio útil. Se o senhorio não exercer a preferência terá direito ao laudêmio, ou seja, uma porcentagem sobre o negócio realizado.

O Código Civil de 2002, instituído pela Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, não incluiu a enfiteuse no rol taxativo de direitos reais, “em razão de sua incompatibilidade com a cláusula geral da função social da propriedade. Com efeito, a sua natureza perpétua não se concilia com a necessária circulação econômica dos bens de produção. A transmissão da titularidade do domínio útil pelo foreiro aos herdeiros em decorrência do droit de saisine estimula a ociosidade e coloca em segundo plano a prospecção de riquezas em favor da coletividade” (in Código Civil Comentado, Nelson Rosenvald, coordenação Cezar Peluso, p. 2324).

Nesta toada, o art. 2.038 do CC proíbe a constituição de novas enfiteuses e subenfiteuses, subordinando-se as existentes, até sua extinção, aos princípios do Código Civil de 1916, excetuando, no entanto, pelo seu parágrafo segundo, a instituição de enfiteuses administrativas:

 

Art. 2.038. Fica proibida a constituição de enfiteuses e subenfiteuses, subordinando-se as existentes, até sua extinção, às disposições do Código Civil anterior, Lei n o 3.071, de 1 o de janeiro de 1916, e leis posteriores.

...

§ 2 º A enfiteuse dos terrenos de marinha e acrescidos regula-se por lei especial.

 

A enfiteuse administrativa difere do aforamento civil tão somente pelo fato de (i) o senhorio tratar-se de Pessoa Jurídica de Direito Público, (ii) ter legislação própria de regência e (iii) recair sobre os chamados bens dominicais previstos no inciso III do artigo 99 do Código de Reale, permanecendo, destarte, os demais conceitos.

Percebe-se, portanto, a onerosidade intrínseca à constituição de enfiteuse. TARTUCE é peremptório ao atribuir o caráter oneroso à toda enfiteuse:

 

Quando do surgimento do instituto, nos anos iniciais do Código Civil, apontava-se que a superfície seria bem mais vantajosa do que a enfiteuse, pelas diferenças marcantes entre os institutos. Primeiro, porque a superfície pode ser gratuita ou onerosa, enquanto a enfiteuse era sempre onerosa. (in Flavio Tartuce, Direito Civil. Direito das Coisas. Volume 4. p. 607)

 

LÔBO reafirma tal onerosidade, criticando-a, no entanto, severamente, em função de obtenção de renda parasitária pelo senhorio:

 

A enfiteuse sempre foi objeto de reação negativa da maioria dos autores, por ser instituto tipicamente medieval, segundo a cultura da época de superposição de titularidades, para remuneração do senhorio feudal parasitário, que reservava para si o domínio direto perpétuo da coisa.  (in Paulo Lôbo, Direito Civil, 2015, p. 239).

 

Já DA COSTA, orientando os registradores de imóveis em seu livro Enfiteuse – Aforamento ou Emprazamento, afirma textualmente sobre a incidência de ITBI na constituição de enfiteuse, como consequência de sua não graciosidade:

 

A própria incidência do ITBI na constituição ou na transferência do contrato de enfiteuse evidencia a natureza jurídica do domínio útil como direito real de propriedade, nos termos do art. 156, II, da Constituição Federal.

Por ocasião do registro do contrato de enfiteuse (aforamento), será necessário averbar também o número de inscrição do imóvel no cadastro da Prefeitura Municipal, que será criado para fins de cálculo do ITBI, devido na aquisição do domínio útil, por força do contrato de enfiteuse (art. 110, DL no 9.760/1946) e, também, doravante, para cobrança do IPTU. (ob. já citada.pag.14/15).

 

Não por outro motivo, a Lei Complementar de nº 7 de 06 de janeiro de 1997, do Município de Florianópolis, prevê em seu artigo 281-A, inciso III, a incidência de ITBI sobre a instituição de enfiteuse:

 

Art. 281-A O valor da base de cálculo será reduzido:

...

III - na instituição ou extinção do domínio útil e da enfiteuse e na transmissão dos direitos do enfiteuta, em um terço do valor venal do imóvel; e

 

De fato, o próprio contrato de constituição de aforamento firmado entre o consulente e a Secretaria de Gestão do Patrimônio da União prevê em sua cláusula oitava o dever de efetuar o pagamento do foro:

 

CLÁUSULA OITAVA - Do Foro - Que o outorgado assume a condição de foreiro, ficando sujeito ao pagamento do foro anual de R$ 38,37 (trinta e oito reais e trinta e sete centavos), importância equivalente a 0,6 % (seis décimos por cento) do valor do domínio pleno do terreno objeto deste contrato, estipulado pela Secretaria do Patrimônio da União, no valor de R$ 63.960,00 (sessenta e três mil novecentos e sessenta reais), com base na planta de Valores Genéricos para a localidade do imóvel, e anualmente atualizado na forma do art. 101, do Decreto-Lei nº 9.760, de 5 de setembro 1946, a ser cobrado na forma e condições previstas em portaria do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão.

 

O descumprimento da obrigação contratada na cláusula oitava redundará na caducidade do aforamento, retornando o bem ao domínio da União. É o que consta no parágrafo único do artigo 101 e no inciso I do artigo 103 do Decreto-Lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946:

 

Art. 101 - Os terrenos aforados pela União ficam sujeitos ao foro de 0,6% (seis décimos por cento) do valor do respectivo domínio pleno, que será anualmente atualizado.                

Parágrafo único. O não-pagamento do foro durante três anos consecutivos, ou quatro anos intercalados, importará a caducidade do aforamento.

 

Art. 103.  O aforamento extinguir-se-á:

I - por inadimplemento de cláusula contratual; 

 

Constata-se que a previsão legal acerca da consequência jurídica do inadimplemento do foro foi transcrita para o parágrafo segundo da cláusula décima segunda do já mencionado contrato:

 

PARÁGRAFO SEGUNDO - O não pagamento do foro durante 3 (três) anos consecutivos ou 4 (quatro) anos intercalados importará na caducidade do aforamento (art. 101, parágrafo único, do Decreto-Lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946), procedendo-se na forma do disposto nos artigos 118 a 121 do Decreto-Lei nº 9.760, 5 de setembro 1946.


Não restam dúvidas para este parecerista que a constituição de enfiteuse implica onerosidade ao enfiteuta, consistente na obrigação de realizar o pagamento anual e perpétuo do foro em favor do senhorio, afastando, destarte, a incidência do imposto de competência estadual sobre transmissões graciosas.


Resposta

Pelo exposto, responda-se ao consulente que não incide ITCMD na constituição de enfiteuse administrativa.

É o parecer que submeto à elevada apreciação da Comissão Permanente de Assuntos Tributários.



PAULO VINICIUS SAMPAIO
AUDITOR FISCAL DA RECEITA ESTADUAL - Matrícula: 9507191

De acordo. Responda-se à consulta nos termos do parecer acima, aprovado pela COPAT na Sessão do dia 06/10/2023.
A resposta à presente consulta poderá, nos termos do § 4º do art. 152-E do Regulamento de Normas Gerais de Direito Tributário (RNGDT), aprovado pelo Decreto 22.586, de 27 de julho de 1984, ser modificada a qualquer tempo, por deliberação desta Comissão, mediante comunicação formal à consulente, em decorrência de legislação superveniente ou pela publicação de Resolução Normativa que adote diverso entendimento.

Nome Cargo
DILSON JIROO TAKEYAMA Presidente COPAT
FABIANO BRITO QUEIROZ DE OLIVEIRA Gerente de Tributação
NEWTON GONÇALVES DE SOUZA Presidente do TAT
BERNARDO FRECHIANI LARA MACIEL Secretário(a) Executivo(a)

Data e Hora Emissão 23/10/2023 09:26:40